«Até ao fim» é uma rubrica do Maisfutebol que visita adeptos que tenham uma paixão incondicional por um clube e uma história para contar. Críticas e sugestões para rjc.externo@mediacapital.pt

Miriam Raquel, 20 anos. Tenra idade, mas já ligação incondicional ao Tondela, clube da terra. Sócia número 999, registada há cerca de seis anos. Sempre gostou de futebol. Cresceu a ver pela televisão e, por insistência, ganhou a permissão dos pais para, com alguém de «confiança», ir ao Estádio João Cardoso ver os auriverdes jogar.

Sentiu de viva voz, de corpo presente, a ascensão dos beirões à elite do futebol português. Da extinta 2.ª Divisão Nacional ao convívio dos maiores. A paixão crescente convenceu a família que, outrora desligada, ganhou também afeto e gosto pela bola e pelo Tondela.

«Inicialmente era um problema. A minha mãe dizia que eu era menina, nunca iria ao futebol sozinha. O meu irmão nunca gostou de futebol, não ia comigo. O meu pai, os turnos [do trabalho] não coincidiam. Com 15 anos, não deixavam ir sem ter alguém de confiança. Depois, comecei a ir com colegas quando o Tondela estava na 2.ª Divisão. Entretanto, os meus pais começaram a ir e a ver que o ambiente não era pesado como ouviam», conta, ao Maisfutebol.

Aos primeiros passos, seguiu-se a junção à claque ‘Febre Amarela’. Não foi fácil, mas a família acabaria convencida. E alistada.

«Os meus pais estavam preocupados, havia notícias de confusões com claques, que os ambientes não eram os melhores. Só que foram percebendo, começaram a deixar e atualmente também são [membros]. Foram arrastados comigo», nota.

Miriam vai a todos os jogos em casa. Fora, já viu o Tondela vencer, por exemplo, na Luz e no Dragão. E a empatar mais que uma vez em Alvalade. No futuro, quer ir apoiar se houver jogos na Madeira ou Açores. «De norte a sul, estou lá sempre», atira.

Primeiro o estágio, depois o estádio

Conciliar a vida académica/profissional e ir aos jogos do Tondela implica rigor e disciplina de segunda a sexta-feira. Miriam está no terceiro ano do curso de Enfermagem, na Escola Superior de Saúde de Viseu, cidade na qual passa a semana. Ao fim de semana, vai a casa e vê os jogos no João Cardoso. Ou sai para jogos fora, seja a que estádio for: de Portimão a Braga.

Na cidade minhota, a da última saída, exemplifica o que é para si apoiar o Tondela. Nem que vá para o estágio que está a fazer nestes meses em Viseu, no âmbito do curso, quase sem dormir. Os professores chamam-lhe «a menina do Tondela».

Miriam Raquel arrastou a família para o Estádio João Cardoso, para apoiar o Tondela

«É preciso levantar mais cedo para estudar, ajustar ao máximo os horários. Na última deslocação, em Braga, há duas semanas, tinha estágio no dia a seguir [2.ª feira]. Tinha de estar por volta das 7h15 no serviço. Chegámos a Tondela por volta da uma da manhã. Tive de ir para a Viseu, desfazer a mala, preparar tudo para o dia a seguir. Fui para estágio com hora e meia de sono. Os orientadores, quando me viram de manhã, disseram: “Ó Miriam foste ao futebol, não foste?”. E eu: “Fui ver o Tondela”. Já sabem: quando apareço cansada, há jogo do Tondela», relata.

Matosinhos sem arrependimento e os ídolos

A juventude deixa garantia de futuro no apoio ao Tondela e Miriam tem já um livro de histórias para contar. Esta é mais uma, da última época: relaxou para um dos exames mais complicados na universidade e passou. Na véspera, fora ver o clube a Matosinhos: só saiu triste com a eliminação da Taça.

«Tínhamos os oitavos de final da Taça contra o Leixões. No dia a seguir, tinha uma frequência de uma das cadeiras mais difíceis do curso. Nunca fui de estudar só nas vésperas e penso assim: o que sei na véspera, não vou saber mais por estudar mais duas horas. Pensei: o jogo é às oito da noite, no máximo uma da manhã estamos em Tondela. Acontece que empatámos, fomos a prolongamento, penáltis e cheguei a Tondela às quatro da manhã. Tive de levantar-me às seis para ter frequência por volta das 7h30. Fui praticamente de direta, mas valeu a pena. Fomos eliminados, mas deu para passar com boa nota. Não me arrependo», garante.

Miriam numa deslocação do Tondela a Alvalade, para um jogo ante o Sporting

Além de adepta, Miriam já esteve como atleta no râguebi e tem ainda outra paixão desportiva: o aquadance: uma mistura de dança e ginástica acrobática dentro de água. Numa região fora das grandes urbes - Tondela tem cerca de 4.500 habitantes - faz também questão de reforçar o lado familiar no acolhimento dos atletas portugueses de outras zonas e aos estrangeiros.

«Por Tondela ser uma cidade tão pequena, acaba por ser acolhedora. Fazemos sempre os possíveis para que, quem vem, se sinta em casa durante a época. As caras vão começando a ser familiares, cruzamo-nos na rua constantemente, no ir às compras», descreve. Aproveita, pois, para colecionar momentos, fotografias e camisolas de ídolos: elogia o capitão Cláudio Ramos pelo «exemplo» dado, mas também outros: Ricardo Costa, Tomané, Miguel Cardoso, David Bruno ou Joãozinho. «Sempre que vestiram a nossa camisola deram tudo», salienta.

A televisão que tramou Miriam

Na primeira época na I Liga, 2015/2016, o Tondela lutava arduamente pela permanência. A 26 de abril, na primeira de quatro finais, havia jogo em Setúbal: o Tondela venceria por 1-0 com um golo de João Pica ao minuto 86. Mas isto serve só de contexto para mais uma aventura de Miriam. Como chegaria tarde do Bonfim, com aulas no dia a seguir, os pais não queriam que a filha fosse ver o jogo ao estádio. Eram cerca de seis horas e 600 quilómetros no total.

Miriam disse então que «ia a casa de uma colega estudar». Mas foi ao jogo. A omissão acabou pela televisão. «No final do jogo, tinha uma chamada não atendida do meu pai. E eu: “já descobriu”. “Então, filha, está bom o estudo?”. “Ó pai, está muito bom”. “Pois, o engraçado é que acabei de ver-te na televisão”. Não correu bem, mas já não havia nada a fazer, já estava em Setúbal (risos). Como foi exceção, não houve castigo», conclui.

Milhares de quilómetros, dezenas de canções, golos cantados, melhores e mais sofridas memórias. Da subida às consecutivas permanências dos últimos anos. «A cada jogo há sempre histórias novas para contar. Se há algo que gostaria de transmitir um dia, quando tiver filhos, seria sempre o gostarem do Tondela como eu gosto».

Pelo Tondela, Miriam deixa o livro aberto. Por mais jornadas. Na curva. No estádio.

Artigo original: 21-02; 23h50

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