«Até ao fim» é uma rubrica do Maisfutebol que visita adeptos que tenham uma paixão incondicional por um clube e uma história para contar. Críticas e sugestões para rjc.externo@medcap.pt

«Cândido Carvalho Soares, mais conhecido pelo Russo. Quando era miúdo, era mesmo loiro e a minha mãe começou a chamar-me ‘o meu russinho’. E ficou.»

Ficou o nome. E a história. Russo é figura mais que conhecida em Barcelos. A história da sua vida confunde-se com a cidade do Cávado. Com o Gil Vicente. Jogou 12 épocas na equipa principal, de 1967 a 1979. Treinou os escalões de formação. Hoje, à porta dos 70 anos, a cumprir em abril, é um «adepto fervoroso». Sofre na bancada.

Tudo começou quando, em 1967, o Gil Vicente o resgatou ao Fão, clube da vila da qual é natural. Fechou a carreira com dois anos em Mirandela, mas a vida passou toda para Barcelos, a pouco mais de 20 quilómetros da terra que o viu nascer.

«Vivo em Barcelos desde 1967. Casei, tenho os meus filhos, faço a minha vida em Barcelos. O amor ao clube é incondicional. Agora, como adepto fervoroso, sou sócio do Gil há já longos anos. Com 15 anos, jogava no Fão, contra o Gil. O Gil estava na regional e o treinador era um espanhol que vivia em Barcelos e trouxe-me. Com 16 anos, jogava no Gil Vicente», começa por dizer, ao Maisfutebol.

A mudança em tenra idade para os gilistas até obrigou a um aval superior. E uma curiosa história, com peso à mistura nos calções.

«Foi preciso pedir autorização para jogar nos seniores com idade de juvenil. Na altura, era preciso uma autorização do ministro, talvez do desporto, não sei. Não tinha peso suficiente para jogar. Era franzino. Ia-se ao centro de medicina e, para ter mais peso, tinha de pôr-se um certo peso escondido nos calções para pesar o suficiente, senão não podia jogar. Uma manobra que agora não quero explicar (risos)», concretiza.

Peripécias à parte, as lágrimas veem-lhe ao rosto, com voz emocionada, ao lembrar o Gil Vicente dos tempos do Adelino Ribeiro Novo. Ali jogou, ainda com o piso pelado, na década de 70, a de uma reorganização que ajudou o clube a chegar, mais tarde, no fim dos anos 80, ao topo do futebol português.

É desta bancada do Estádio Cidade de Barcelos que Russo vê os jogos do seu Gil Vicente

«O Adelino Ribeiro Novo era fabuloso, fantástico. Um campo com dimensões reduzidas em relação ao estádio novo. A massa associativa estava em cima dos fiscais de linha, barulho ensurdecedor. Quando jogava, era raríssimo o campo não ‘arrebentar pelas costuras’. Vejo os juniores, os jogos são no Adelino Ribeiro Novo, não falho ao sábado. Sempre que entro… [voz emocionada], sempre que entro naquele estádio… fico comovido. Veem-me lágrimas aos olhos. Olho para aquele estádio, para os dias que lá passei, fico emocionado», atira.

Desses tempos, também não esquece uma expressão célebre, sempre que um remate ia mal direcionado no sentido da baliza norte. «Mais uma para a Tor, dizia-se muito isso», atesta, sempre que as bolas iam parar junto da fábrica têxtil com esse nome, junto ao estádio.

Mesmo com alguns anos de ausência na década de 90, por ter seguido com o atual adjunto de Vítor Oliveira, Sá Pereira, como adjunto deste para Lamego, Trofense, Freamunde ou Paredes, nunca desligou do seu Gil Vicente. A mágoa pelo que o clube viveu na última década e meia, fruto do Caso Mateus, não lhe é indiferente.

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«Custa-me. Os adeptos, mesmo quando passavam e ainda hoje passam por mim, era com mágoa: ‘E o nosso Gil, como está…’. Era com tristeza que os adeptos do Gil me abordavam», partilha. Mas não deixou de seguir o clube: na II Liga ou no Campeonato de Portugal. «Não falhava, mesmo que fosse na regional. Mas está de volta à primeira, o lugar onde deve estar», sublinha.

Destacado pelo longo cabelo como jogador, Russo nunca jogou na primeira divisão. Contudo, não esquece particulares que disputou, à margem da Festa das Cruzes, ante o FC Porto de Cubillas, Fernando Gomes, António Oliveira, Octávio Machado, Seninho. Ou com o Benfica de Chéu, Pietra ou Diamantino. «O Benfica vinha cá sempre na altura da Festa das Cruzes e o campo rebentava», afirma. Fala com nostalgia até então inédita campanha até às meias-finais da Taça de Portugal, em 1977. O Jamor ficou a uma escassa eliminação, aos pés do Sp. Braga.

«Nesse dia, o comércio e a indústria em Barcelos - muita na altura - fecharam portas só para ir ver o Gil Vicente-Braga. Não tínhamos noção do que estava a acontecer, o entusiasmo foi grande. Empatámos 0-0 após prolongamento e tivemos de ir a Braga. Perdemos 4-1 e até fui eu que marquei o golo», recorda. Chico Gordo fizera um hat-trick pelo Sp. Braga, Chico Faria o outro golo.

Russo, na década de 70 como jogador do Gil Vicente (em baixo, o primeiro, da dir. p/esq.)

Russo tem em si uma enciclopédia gilista que até atira, de cabeça, a equipa quase toda dessa mítica meia-final. «Dejair a guarda-redes, Lemos da Silva, Zé Albino, Berto, Passos, Fernandes, Paulo César, eu, Simões, Lula». Só faltou um: Manuel Marques. Mas a memória está lá, viva.

Em 2012, como adepto, esteve na final da Taça da Liga perdida para o Benfica, em Coimbra, no mesmo palco onde, em 1970, como jogador, perdeu a final da então III Divisão Nacional, para o Cova da Piedade. «Na altura, até ia um comboio especial de Barcelos para Coimbra», recorda.

«Jogos marcantes» são muitos, do relvado à bancada, mas há um momento que não esquece: «como adepto, a subida à 1.ª Divisão, pela primeira vez na história do clube, em 1989». Foi com Rodolfo Reis ao leme, a 3 de junho de 1990, na Póvoa de Varzim.

Como já esteve do outro lado, é comedido na plateia. «Sou discreto e até o meu genro, que vai ver por vezes comigo, diz-me: “anda sempre impávido e sereno a ver os jogos”. Eu sou incapaz de insultar e fico nervoso quando os jogadores são insultados, andei lá dentro e sei o que custa», compara.

Além de sócio, número 889, faz também parte de uma comissão de apoio ao Gil Vicente, em tudo o que sejam eventos a favor do clube, como exposições. Não esconde o «orgulho» por defender os ‘galos’.

«Barcelos sabe receber e os jogadores que vêm para aqui sentem-se quase em casa deles. Foi assim comigo, comigo aconteceu isso e é por isso que as pessoas se sentem bem. Estou sempre disponível para o que for necessário, pelo Gil Vicente dou tudo», remata.

Ontem, do pelado ao relvado no Adelino Ribeiro Novo. Hoje, no Estádio Cidade de Barcelos, no lugar de referência: bancada central, poente inferior, fila 9, lugar 28.

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