«Estava a tremer, ainda sentia a adrenalina. O encontro que tive foi numa das melhores suites de hotel em Las Vegas. O meu corpo ainda estava incandescente de prazer. Isto é muito melhor do que ganhar uma corrida, pensei. Isto é muito melhor do que competir nos Jogos Olímpicos. Se soubesse como me iria sentir, nunca teria perdido tanto tempo noutra coisa.» [Excerto do livro «Fast Girl: Running from Madness», de Suzy Favor Hamilton]


Esta não é apenas a história de uma mudança drástica de rumo na vida. Está longe de ser, apenas, o retrato de uma atleta olímpica que se tornou acompanhante de luxo depois de terminar a carreira. Esta é, acima de tudo, uma história de insatisfação contínua. Tanta que leva ao desespero e dali à depressão.

O mundo da alta competição tem muitos casos de exigência extrema que extravasa a capacidade natural do ser humano. Suzy Favor Hamilton é, por ventura, apenas mais um exemplo. Que ganhou destaque pelo escape que encontro e foi exposto ao mundo em 2012: tornou-se acompanhante de luxo.

O escândalo atirou-a de volta para o charco de onde julgava ter saído quando parou de correr. Ficou exposta, perdeu patrocinadores, viu-lhe diagnosticada bipolaridade.

Foi em dezembro daquele ano que o site «The Smoking Gun» trouxe o caso a público: Kelly Lundy, a mais cara acompanhante de luxo de Las Vegas, era, na verdade, Suzy Favor Hamilton, três vezes atleta olímpica pelos Estados Unidos.

Quase três anos depois, Suzy conta toda a história em livro, lançado na segunda-feira, nos Estados Unidos. «Fast Girl: Running from Madness» [ndr. «Rapariga Rápida: fugindo da loucura], foi o título que escolheu.



Da bulimia à queda na final de Sidney
 

«Quando descobri a corrida, adorei que fosse algo tão puro. Só o meu corpo e eu. Quando entrei para a equipa de atletismo da escola, no sétimo ano, era muito mais rápida do que as outras raparigas e o treinador colocou-me a correr na equipa dos rapazes. Mas eu também já era mais rápida que a maioria dos rapazes, também. Não gostava do destaque que tinha e ir para os treinos passou a originar crises de ansiedade. Queria ganhar, mas detestava não conseguir integrar-me.» [Excerto do livro «Fast Girl: Running from Madness», de Suzy Favor Hamilton]


A revista «Sports Illustrated» publicou alguns excertos do livro que contam, passo a passo, o caminho, dentro e fora da pista, que Suzy percorreu até aos dias de hoje.

Revela, por exemplo, que sofreu de bulimia no início da carreira, doença que só venceu quando conheceu aquele que viria a ser o seu futuro, e atual, marido: Mark Hamilton.

«Não importava o quão magra estava, sentia-me sempre pesada porque eu não achava que tinha um corpo perfeito para ser atleta»
, justificou, no livro, Suzy Favor Hamilton.

Participou em três Jogos Olímpicos (1992, 1996 e 2000). Sempre sem sucesso.
 

«Na noite antes da eliminatória dos 1500 metros em Barcelona [Olimpíadas de 1992], estava de volta ao lado negro que sempre me acompanhava em competição. Além disso, a Vila Olímpica estava um caos, com música alta, bebedeiras e gargalhadas. Deitei-me na cama e vi-me a falhar uma e outra vez. Acho que não dormi, de todo. A última coisa que queria fazer era correr nos Jogos Olímpicos.»
(…)
«Não conseguia concentrar-me enquanto assumia a minha posição. E depois comecei a correr. Sentia que não pertencia àqueles atletas de elite. Reforcei a ideia com uma volta e meia. Sentia que estava a correr em cima de areia. As outras passaram e eu terminei em último.»

[Excerto do livro «Fast Girl: Running from Madness», de Suzy Favor Hamilton]


Em Atlanta voltou a sair sem glória, mas em Sidney tudo prometia ser diferente. Já tinha 32 anos, sabia que era a sua última oportunidade. Tinha sido vice-campeã norte-americana e, nos Mundiais de Oslo, ficara perto de bater o recorde do mundo dos 1500 metros e ficara com a melhor marca do ano. Não havia volta a dar: chegava à Austrália como favorita.

No livro conta que o otimismo se foi na meia-final. Ficou em segundo, foi batida sobre a meta e voltou à espiral depressiva. «Senti-me como se já tivesse perdido. Antes da final, queria fugir»
, conta.

Numa final em que Portugal teve como representante Carla Sacramento
, Suzy encarou o desafio, mas não gostou nada quando percebeu que tinha sido designada para ficar na primeira pista. «Isso significava que tinha de começar rápido para evitar ficar presa»
, explica.

O relato do livro, depois, é esclarecedor:

«Parecia que meu coração ia bater até ficar em pó. Quando ouvi o tiro, comecei a correr e, em pânico, atirei-me para a liderança, mas a cada passo que dava só pensava que queria que aquele pesadelo terminasse. A uma volta do fim, a respiração das corredoras atrás de mim ficou mais alta, o que me fez sentir como um animal a fugir do predador. As minhas pernas ficaram pesadas e a 150 metros do fim, as atletas começaram a passar-me, uma a uma. Ia ficar em último, na minha última corrida Olímpica. Não havia ouro para o Mark [marido], para o meu treinador, para os meus pais, para a memória do meu irmão falecido. De coração partido, disse a mim própria para cair. E caí.» [Excerto do livro «Fast Girl: Running from Madness», de Suzy Favor Hamilton]


A queda (1min):


«Senti-me uma idiota, mas, pelo menos, não tinha de correr. Depois percebi que não podia deixar a corrida por acabar. Levantei-me a cruzei a linha de meta, mas quando os jornalistas chegaram até mim não aguentei a vergonha e caí outra vez. Fechei os olhos e senti os médicos a levantarem-me e levarem-me.» [Excerto do livro «Fast Girl: Running from Madness», de Suzy Favor Hamilton]


Como Suzy Favor Hamilton passou a ser Kelly Lundy



O final de carreira, sem honra nem glória, trouxe-lhe a depressão. E atrás dela veio o mundo novo. Já tinha uma filha, já tinha tentado o suicídio, frustrada pela inadaptação a um trabalho que não a satisfazia.

Numa viagem a Las Vegas convenceu o marido a contratarem uma acompanhante de luxo para realizarem uma fantasia do casal. Travou o conhecimento necessário para perceber que era também o que queria. Recebeu aprovação do marido, transformou-se em Kelly Lundy e iniciou uma vida paralela.


«Ter homens a gastar dinheiro comigo arrepiava-me. Desde cedo que me diziam que eu estava destinada a grandes coisas e persegui esse sonho na pista. Agora, como Kelly, também queria ser a número um», conta.
 

«Agora que dediquei a minha vida ao sexo, a necessidade de ser a melhor na cama superou a necessidade de ser a melhor na pista. Mas isto é ainda melhor, porque eu detestava a competição que tinha para ganhar uma corrida. Tudo nisto de ser uma acompanhante é muito bom. Não quero voltar à minha vida antiga. Nunca mais.» [Excerto do livro «Fast Girl: Running from Madness», de Suzy Favor Hamilton]


Ganhou gosto e confiança na nova forma de encarar a vida. Confiou aos clientes a sua real história, com quem dizia «criar uma ligação». Um deles, nunca soube qual, traiu-a e o escândalo rebentou em 2012.

Hoje está ultrapassado. Suzy leva uma vida normal, com a filha e o marido, e quer usar o seu livro para que os perigos do submundo da alta competição não sejam encarados pela superfície. Existem. Ela sabe bem que sim.
 

«Quando corria, sentia os músculos a ceder. Foi correr que fez de mim um modelo, mesmo que eu desejasse muito pouco que isso acontecesse. Comecei a odiar a coisa que mais amava. Agora tenho um novo propósito: partilhar a minha história. Ter a coragem de continuar a lutar. Quero mostrar aos outros, especialmente à minha filha, que temos de viver por nós próprios e que com amor e ajuda é possível sair do nosso buraco negro»
[Excerto do livro «Fast Girl: Running from Madness», de Suzy Favor Hamilton]