Cada jogador tem o seu próprio trajeto e o seu tempo próprio de maturação. Foi esta a ideia sustentada pelo diretor técnico das camadas jovens do Benfica, em participação no podcast «Ciência e Futebol», do Portugal Football Observatory da Federação Portuguesa de Futebol.

Rodrigo Magalhães começou por pegar nos exemplos de António Silva e Bernardo Silva, que tiveram períodos difíceis na formação, garantindo que nunca deixaram de ser aposta do clube.

«O António é um indivíduo que, a determinada altura, aos 12 ou 13 anos, quando transita do centro de formação de Viseu para o Benfica Campus, tinha uma aptidão acima da média para a posição de central e médio, mas o grau de prontidão não permitia ter sucesso imediato, ou proporcional ao talento que o clube lhe reconhecia. Isso cria duvidas aos jovens talentos e aos encarregados de educação. O António acaba por regressar a casa, dadas as dificuldades de adaptação, e posteriormente voltar aos quadros do Benfica», recorda o responsável encarnado.

Rodrigo Magalhães lembra ainda que António Silva chegou a jogar um escalão abaixo, nos sub-14, e que sentiu dificuldades para conquistar o seu espaço nas seleções jovens.

«A partir de determinada altura, na transição de sub-16 para sub-17, teve um nível maturacional proporcional à sua idade cronológica. Nestas idades, entre os 13 e os 16 anos, na extremidade desta curva, muitas vezes só aos 17 anos é que dão ao pulo pubertário, e têm condições físicas que lhe permitem competir e suportar as próprias ações. Depois teve uma ascensão meteórica: no segundo ano de júnior joga na equipa de sub-23, vence a Youth League e o Nacional de Juniores, acaba a integrar os trabalhos da equipa A, e é agora um dos centrais de referência da equipa», acrescenta.

«Muitas vezes assiste-se a uma falácia, que é dizer que o Bernardo nem era aposta do Benfica, ou o António Silva. O António era uma aposta do Benfica, que estava consciente da sua qualidade. Foi integrado no patamar competitivo correspondente à sua idade biológica, num contexto que lhe permitia ter sucesso. Havia jogadores de sub-15 que já jogavam nos sub-16, estavam mais aptos, e aos olhos do Benfica tentámos enquadrar o jogador num contexto adequado ao seu crescimento, e mais tarde veio a recuperar e até superar muitos desses jogadores», sustenta Rodrigo Magalhães.

«Segredo do Bernardo foi a sua resiliência e persistência»

Ainda relativamente a Bernardo Silva, o diretor técnico da formação do Benfica diz que o esquerdino «era um fora de série» nas escolas do Benfica. «A bola era o complemento do corpo. O nível técnico do Bernardo era fantástico, a tomada de decisão muito acima da média. Obrigava os treinadores a pensar o jogo de forma diferente. Lembro-me de um treino de sub-12, com o mister Luís Nascimento, num exercício com princípios de jogo e uma transição, em que os colegas estavam com alguma dificuldade a interpretar o 3x2, e o Bernardo deu a solução A, B, C, D e E. Para além disso ainda explicou que, se acontecesse isto depois, o colega podia fazer aquilo e aquilo», recorda.

Rodrigo Magalhães diz que Bernardo «ainda teve algum sucesso nos sub-13, mas depois passou por um período muito complicado, mas o clube acreditou nele». «Claro que houve treinadores que acreditaram mais do que outros, mas o talento estava lá, em estado latente. Não havia tanto a capacidade de ter equipas B, nessa altura, e ele foi tendo os seus momentos competitivos. Alguns jogos amigáveis eram requeridos para o efeito de dar volume de jogo e ele poder desenvolver-se. Ali próximo do último ano de júnior acaba por concretizar todo o potencial e emerge o talento do Bernardo como o conhecemos.»

«Se calhar, o principal segredo para o Bernardo atingir o patamar em que está, foi a sua resiliência e persistência. Hoje em dia, assistimos a encarregados de educação ou jogadores que ficam frustrados por jogar menos. O Bernardo passou por este processo por vários anos, mas sempre treinou com um sorriso no rosto. Sempre desceu a rampa do Seixal com uma alegria enorme e um prazer enorme em treinar, independentemente de jogar muito ou pouco. Pouco se fala no carácter, na personalidade, no nível psicológico, que foram determinantes para o nível do Bernardo», elogia Rodrigo Magalhães.

«Bernardo chegou a jogar como central, e não estou a ser irónico»

Nesta conversa no podcast da Portuguese Football Factory, Rodrigo Magalhães também destacou a versatilidade tática que o Benfica trabalha, e que já tem conquistado os principais treinadores do futebol mundial.

«É extremamente gratificante ouvir um treinador de referência, como Guardiola, mencionar o ecletismo posicional do Bernardo, a sua capacidade em desempenhar diferentes posições. Nós pensamos que o jogador de futuro é esse. O treinador vai querer o jogador que permite, sem fazer substituições, alterar a equipa. O Bernardo joga a extremo, joga como interior, como falso nove… O Bernardo, quando era benjamim, jogava a médio-centro, a médio-esquerdo, médio-direito e avançado. No futebol de sete chegou a jogar como central esquerdo. Não estou a ser irónico. Foi num torneio em Espanha, contra equipas que nos pressionavam na frente, e precisámos de qualidade para construir», recorda o responsável encarnado, acrescentando que Ruben Dias, João Cancelo ou João Félix também estavam habituados a desempenhar várias posições na formação.

«O ecletismo posicional ajuda a construir um jogador versátil, com maior capacidade de adaptação a diferentes contextos competitivos, seja o sistema ou um país diferenciado», acrescenta.

Rodrigo Magalhães explica que, na fase final da formação, há uma «aproximação ao modelo da equipa principal», mas defende que o percurso deve ser o mais abrangente possível.

«Não temos uma bola de cristal. Não conseguimos olhar para um miúdo de 10 anos e dizer que o vamos desenvolver neste sistema. Podia dominar um sistema, mas o futebol está em evolução constante. Temos de ser ecléticos, preparar o jogador para encontrar o treinador A, B ou C dali a dez anos», sustenta.