[No dia em que o mundo dá um último adeus a Rogério Pipi, o Maisfutebol recorda a última entrevista que a lenda viva do Benfica deu ao nosso jornal. Aconteceu a 8 de novembro de 2013, quando Pipi tinha 90 anos, e serviu para recordar um pouco a vida dele: da proposta do Sporting à aventura no Brasil, de Eusébio ao emprego como vendedor automóvel]

Rogério Pipi atende o telefone e com uma lucidez admirável pergunta quem é. «Quer falar da final de 1952, não é?». É sim senhor. «Foi a melhor final da Taça de sempre. Ganhámos nós 5-4, mas se tivesse ganho o Sporting também estava bem.»

Falar de derbis e falar de Taça de Portugal, falar enfim de derbis na Taça de Portugal, obriga a falar obrigatoriamente daquele que é porventura o melhor Benfica-Sporting da história: aconteceu em junho de 1952 no Jamor. O Benfica fez o golo da vitória no último minuto.

Obra de Rogério Pipi, lá está.

«O árbitro já estava com com o apito na mão pronto para o levar à boca. Faltavam quinze segundos para o fim. », indica. «O José Águas colocou-me a bola para correr, eu ganhei em velocidade a dois advesários e rematei à entrada da área. Foi um grande golo.»

Aos 90 anos de idade - «faço 91 no dia 7 de dezembro», indica - Rogério Pipi mantém uma memória deliciosa. «No fim foi uma coisa incrível: o público invadiu o relvado para nos levar em ombros. Queríamos ir para os balneários e não nos deixavam.»

Foi também um jogo que ficou para a história. O Estádio do Jamor encheu e bateu-se o recorde de bilheteira: 683 mil escudos, que deu 200 contos a cada equipa. «Lembro-me que recebemos 500 escudos de prémio. Na altura ganhava 600 escudos por mês no Benfica.»

Um grande prémio que ainda assim não permitiu a Rogério ficar propriamente rico. «Na altura ninguém enriquecia a jogar futebol.» Mas construía boas memórias, atira-se. «Isso sim, fiz uma carreira bonita e diverti-me muito. O futebol sempre foi a minha vida.»

Antes de dar uma curva na conversa para recordar outras batalhas e outras felicidades, Rogério Pipi volta à final da Taça de Portugal de 1952. ««O Sporting na altura era muito forte, era o Sporting que ainda apanhou alguns dos violinos. Foi campeão nesse ano.»

Aquela final foi especial, porém: talvez por isso, meia hora depois do apito final, Carlos Gomes ainda tinha a cara cheia de lágrimas. «Foi um final muito cruel», disse à reportagem de A Bola.

«Era um grande guarda-redes, difícil de bater», refere Rogério Pipi. «Teve azar, mas aquele jogo correu-me muito bem: fiz três golos.»

«As finais da Taça corriam-me geralmente bem. Fiz quinze golos e ainda hoje sou o melhor marcador. À frente do Eusébio, que também foi um grande jogador no tempo dele.»

Só faltou dizer que o miúdo se portava bem.

Não disse, é certo, mas a partir daí Rogério Pipi desfiou memórias sem parar. «A diferença para o futebol da altura é que agora os jogadores têm mais preparação física e ganham mais dinheiro.»

Aquele que foi um dos melhores jogadores de sempre da história do Benfica, por exemplo, garante que foi o trabalho fora do futebol que lhe permitiu ganhar estabilidade na vida. «Sempre trabalhei. Comecei a trabalhar no Grémio das Carnes, onde também trabalhava o Peyroteo.»


 

Depois veio o interesse do Botafogo, um ano no Brasil e a curva na vida.

«Eu não queria ir: disse-lhes que não duas ou três vezes. Mas eles insistiram e apresentaram-me uma grande proposta. Foi um ano fantástico. Fiquei num hotel em Copacabana, a minha mulher acordava e ia para a praia, eu ia treinar de manhã e à tarde ia ter com ela à praia», sorri.

«Voltei no fim desse ano com 50 contos no bolso, e com a minha mulher grávida do meu primeiro filho. Cheguei a Lisboa e comprei um carro com aqueles 50 contos: um Ford. O dono do stand gostou de mim, disse-me que podia vender muito carros por ser um jogador conhecido e fiquei a trabalhar lá. Foi esse dinheiro que me permitiu ter uma vida estável.»

Rogério Pipi continua a falar: sempre a desfiar recordações. É uma lenda viva e com memória.

«Sabe que eu estive perto de jogar no Sporting?», interroga. «O Peyroteo tentou levar-me para lá.»

Conta que sempre jogou futebol na rua, no bairro da Madredeus, ao lado de Chelas. Deixou de estudar para ir trabalhar para o Grémio das Carnes, onde a vida dele mudou para sempre.

«O Peyroteo, que na altura já era um grande jogador do Sporting, foi arbitrar um jogo de solteiros contra casados do Grémio das Carnes. No fim foi falar com o presidente do Sporting: O miúdo corre, finta, salta, marca golos, temos de o contratar

O Sporting apresentou-lhe uma proposta e Rogério chegou a ir fazer um treino ao clube: o sonho, porém, era o Benfica. Os encarnados souberam do boato, apresentaram-lhe uma proposta superior e Pipi não teve dúvidas.

«Era um jogador muito rápido. A minha velocidade fazia a diferença.»

Tantos anos depois Rogério Pipi, que andava sempre de fato e gravata e por isso ganhou aquela alcunha, solta várias gargalhadas enquanto fala.

«Sabe...», começa por dizer. «Quando se chega aos noventa anos fica-se muito saudosista. É uma década complicada: em cada dez pessoas, só uma chega aos cem anos. Um homem fica melancólico mesmo que não queira.

A conversa dá muitas voltas e volta ao ponto onde começou: a final da Taça de 1952 no melhor dérbi da história. O Sporting começou a ganhar, o Benfica deu a volta, o Sporting deu a volta, o Benfica empatou, o Sporting voltou para a frente e o Benfica deu a volta para a vitória.

«Foi um jogo corretíssimo, jogado com muito brio, taco a taco. Marcava um, marcava outro.» Rogério Pipi marcou três golos e no fim levantou a taça. «Se tivesse ganho o Sporting também estava bem.»

Ficha de jogo
Época 1951/52
Taça de Portugal - Final
15 de Junho de 1952

Estádio Nacional
Árbitro: Reis Santos (Santarém)

Benfica 5
Bastos; Artur e Fernandes; Moreira, Félix e Francisco Ferreira; Corona, Arsénio, Águas, Rogério e Rosário
Treinador: Cândido Tavares

Sporting 4
Carlos Gomes; Juvenal e Pacheco; Veríssimo, Passos e Juca; Pacheco Nobre, Travassos, Martins, Albano e Rola
Treinador: Randolph Galloway (inglês)

Marcadores: 0-1, Albano (10, g.p.); 1-1, Rogério (24, g.p.); 2-1, Corona (49); 2-2, Rola (51); 2-3, Martins (55); 3-3, Rogério (69); 3-4, Rola (71); 4-4, Águas (72); 5-4, Rogério (90).