David Neres tornou-se, sobretudo na última semana, nome de caso no Benfica. As duas derrotas da equipa tornaram ensurdecedoras as dúvidas que já se levantavam antes em surdina: porque é que David Neres não consegue agarrar de vez um lugar no onze?

As dificuldades demonstradas pelo Benfica, frente a FC Porto e Inter Milão, para criar situações de desequilíbrio no último terço aconselhavam um jogador assim, tecnicista, criativo, atrevido. Mas a verdade é que Roger Schmidt insiste em deixá-lo no banco.

Ora por isso, o Maisfutebol levantou outra dúvida.

Porque é que David Neres não é a solução que o Benfica precisa nesta fase da época?

Para procurar a resposta, fomos falar com três analistas de futebol, que olharam para o que é possível ver do lado de fora do balneário encarnado. As explicações andam sempre à volta do essencial: para o tipo de treinador que Roger Schmidt é, Neres tem algumas carências.

«Acho que acima de tudo o Roger Schmidt privilegia o equilíbrio. Ponto. Ele tem uma proposta de jogo que, sendo positiva, está assente numa intenção de controlo, de domínio dos vários momentos, que privilegia jogadores com conhecimento do jogo - e que, olhando para os perfis que ‘comem’ os minutos do Neres, estão mais preparados para este jogar: risco calculado, vertigem cirúrgica, sociedade, amplitude e versatilidade», diz José Chieira, da Wyscout.

«João Mário e Aursnes preenchem esses requisitos, num patamar de rendimento incontestável, e a entrada de Chiquinho, somada ao posicionamento do Rafa, confirma que a ocupação dos espaços centrais é naturalmente determinante para esse controlo que Schmidt privilegia. Por outro lado, a aceleração está garantida entre Rafa e os laterais/alas.»

Rafael Silva, analista do ProScout, deixa uma explicação que é em tudo semelhante. O também analista de adversários, com passado em vários clubes de Lisboa e habituado a estudar as equipas, lembra que Neres tem qualidades que lhe permitiram fazer a diferença ofensivamente, mas não consegue ser completo nos outros momentos.

«Pode atuar pelo lado direito ou esquerdo, é um desequilibrador nato, forte no um contra um, com drible curto e forte em combinações rápidas. É também um jogador que faz muito bem permutas posicionais, algo que Schmidt valoriza muito nas equipas», começa por referir.

«Tem de melhorar a forma como parece por vezes desligado do jogo, algo muito valorizado por Roger Schmidt, principalmente porque pretende uma equipa forte no pressing e com boa reação à perda.  Além disso, já no Ajax, quando deixou de ser opção, demonstrou questões relacionadas com a regularidade: quando a perde e deixa de ser opção, parece entrar numa espiral de frustração que não lhe permite voltar a pôr a qualidade em campo.»

Vale a pena lembrar, a esse propósito, que nada disto é novo na vida de David Neres: os últimos anos no Ajax foram também muito irregulares.

A época na Luz, aliás, até está a ser melhor dos últimos quatro anos. Desde 2019 que o brasileiro não fazia tantos jogos a titular (28), tantos golos (12) e tantas assistências (12). Já fez mais jogos a titular com Roger Schmidt do que nas duas épocas antes de assinar pelo Benfica.

É verdade que antes disso, nas duas temporadas iniciais na equipa principal do Ajax, os números foram francamente bons e tornaram-no uma das grandes promessas do futebol europeu, mas a partir dos 22 anos o brasileiro entrou numa fase menos regular da carreira.

«O desafio maior seria acrescentar as qualidades em falta a Neres, porém, perante o perfil que conseguimos identificar, será um objetivo extremamente ambicioso e que trará outros riscos. Por exemplo, Jorge Jesus tem neste domínio exemplos de sucesso, mas também acumula outros que acabaram por ditar a perda de inúmeros talentos de perfil idêntico nas suas equipas. Para ambos os casos, muito à custa de uma liderança autoritária e autocrática, longe da que Roger Schmidt protagoniza», defende Ricardo Ferreira, analista do Lateral Esquerdo.

«No fundo, independentemente de também dever ser o papel do treinador de rendimento, formar e potenciar, o seu primeiro objetivo deverá ser fazer render e gerir os seus valiosos recursos. Por isso, Schmidt tem optado por outro caminho sempre que dá a titularidade a Neres: coloca-o como avançado, o que implicará menos riscos nos momentos defensivos da equipa. Aliás, tal como fez com Rafa. Mas como Ramos e Rafa têm realizado as eventualmente melhores épocas das suas carreiras, a vida de Neres não se apresenta fácil.»

Seguem a partir de agora as explicações dos analistas em discurso direto.

RAFAEL SILVA (ANALISTA DA PROSCOUT)

«Quando entra de início, David Neres perde gás ao longo do jogo»

«Fator 1: Roger Schmidt já demonstrou que não gosta de mexer muito na equipa, seja em que jogo for e ainda mais quando as posições em que o David Neres é mais forte estão ocupadas por dois jogadores que foram essenciais para a época do clube: Aursnes e João Mário. Neres tem sido utilizado na maioria dos jogos como opção vinda do banco e a verdade é que é um jogador que entra e mexe com o jogo, no entanto sente-se que anda longe dos espaços onde pode fazer a diferença, sempre muito baixo no auxílio, o que o obriga a receber a bola de costas para o jogo e não consegue desequilibrar. No jogo com o Inter teve sempre muitas dificuldades, uma vez que mal recebia bola era logo pressionado e sentia-se que nunca conseguia impor o seu jogo.

Fator 2: A verdade é que Neres é um jogador que, a entrar de início, ao longo do jogo perde ‘gás’ e dos jogadores que podem vir do banco nenhum tem as características dele. Isso faz com que se o Benfica tiver de ir atrás do resultado não tenha nenhum desequilibrador para refrescar a equipa. Neste sentido, a opção de Neres no banco é útil por esta razão, dado que a entrar do banco, fresco pode dar outras coisas à equipa numa fase importante do jogo.

Fator 3: É necessário ter em conta o treino e o dia-a-dia na relação do jogador com o treino, algo que pode ser essencial para o treinador alemão. Poderá sentir que o empenho não está de acordo com aquilo que pretende ou pode estar abaixo dos colegas e por isso não merece entrar na equipa titular.»

RICARDO FERREIRA (ANALISTA DO LATERAL ESQUERDO)

«Schmidt prefere jogadores com perfil de médios-centro para que a equipa viaje junta»

«Roger Schmidt tem na gestão da titularidade David Neres um grande desafio transversal a todos os treinadores: na perspetiva do ‘mapa’ do jogo, ou seja, vendo o jogo à luz dos seus momentos, o treinador com certeza reconhecerá ao brasileiro tremendo potencial em transição e organização ofensiva, mas também lacunas em transição e, principalmente, em organização defensiva. De facto, Neres apresenta nesta perspetiva um grande desequilíbrio nas suas qualidades e parece a principal razão para que Schmidt o esteja a manter fora do onze, procurando uma abordagem inicial aos jogos mais equilibrada.

Neres mostra inequivocamente qualidades invulgares em sub-momentos de criação e de contra-ataque, especificamente no um contra um, na criatividade, no último passe, no cruzamento, na condução diagonal interior, na combinação e na finalização. Porém, a sua reatividade na perda da bola não é constante, a recuperação defensiva é lenta, o equilíbrio emocional em momento defensivo também não é o ideal e em momentos de pressão fá-lo por vezes com insuficiente intensidade. Intensidade... fruto do deslocamento e agressividade, mas, antes disso, do critério que se garante a essas ações.

Deste modo, estamos perante o dilema que retrata a decisão entre o clássico jogador da rua, com todas as raras qualidades e debilidades, e um jogador mais equilibrado sob todos os pontos de vista, competente nos momentos defensivos, criterioso com bola para que a equipa não a perca com facilidade e viaje junta.

Viajar juntos, tal como Alejandro Sierra se referiu ao Sevilha de Sampaoli, mas podemos dizê-lo também do Barcelona de Guardiola ou do Ajax de Van Gaal, entre outros, para permitir constantes múltiplos apoios ao portador da bola, mas também para que, quando de facto se perder a bola, seja mais fácil a sua imediata recuperação, dada a densidade de jogadores que se coloca nesses espaços.

Daí que a decisão de Schmidt seja colocar jogadores originários ou igualmente com perfil de médios-centro nas funções de médios-laterais. Por isso, e porque na realidade, em organização ofensiva, estes jogadores acabam por apresentar, na maioria do tempo, posicionamentos interiores nos quais Neres também apresenta muita qualidade, é verdade, embora seja óbvio que é pelos corredores laterais que o brasileiro apresenta maior potencial de criação, nomeadamente nas competições internas com equipas que se fecham muito e por vezes bem na maior parte dos jogos.»

JOSÉ CHIEIRA (ANALISTA DA WYSCOUT)

«Não é o momento para testar um plano B que pode comprometer equilíbrios, rotinas e dinâmicas»

«Antes de tudo, o David Neres nunca foi, desde que chegou ao Benfica, um titular absoluto, em nenhuma competição - na Liga foi titular por 16 vezes em 24 jornadas, e no total dos jogos oficiais fez os 90 minutos apenas seis vezes (incluindo dois jogos da Taça da Liga).

Aquilo que ele tem dado ao Benfica é, também, aquilo que o leva a não ser indiscutível: predominantemente um desequilibrador, descarado e agitador, que aporta soluções ofensivas raras e diferenciadoras, ainda mais notórias em espaços reduzidos e contextos apertados - ou seja, a chave duma vitória pode sempre passar por ali -, mas que ao mesmo tempo é muito menos efetivo no momento defensivo, naquilo que é o controlo dos espaços e das referências.

Dentro da minha experiência em contextos semelhantes, onde a exigência e a pressão testam a competência do treinador em cada jogo, ou seja, em todos os jogos sem exceção, acredito que Roger Schmidt não quer abdicar de uma proposta que permitiu uma vantagem relevante no objetivo mais importante da época (o campeonato), e entende que este não seria o momento para testar um plano B, que pode potencialmente comprometer equilíbrios, rotinas e dinâmicas.

Ele, melhor do que ninguém, retira do treino e do jogo todos os elementos que sustentam a sua estratégia... e seguramente que, conhecendo muito bem os seus jogadores, terá pesado os prós e os contras dos danos colaterais que, individualmente, um jogador como Neres pode revelar.

Pelo lado do jogador, Neres sabe que seria titular em muitos dos clubes das Big-5, e isto pode ser um fator complexo na forma como lida com os minutos que não vai tendo - mas isso não significa que, neste contexto do Benfica atual, isso seja revelador de menor competência do treinador. Eu pude, aliás, verificar casos semelhantes, noutros jogadores de características claramente diferenciadoras... mas diferenciadoras apenas num momento do jogo (que pode ser mais ou menos importante, dependendo do contexto).

Por exemplo, o Iturbe do FC Porto. São patamares maturacionais distintos, mas serve como exemplo de um caso evidente de não perceber que tinha de se ajustar para poder ter sucesso num contexto como o FC Porto. São jogadores que depois não percebem que há outros fatores, dentro do próprio jogo, que no final podem ir-lhes retirando peso no rendimento da equipa, e por arrasto ir caindo na lista das opções do treinador.

Por outro lado, o próprio treinador tem legitimidade para decidir que não pode, nem deve assumir riscos, ou sequer perder tempo, incrementando as competências de um jogador em prejuízo duma equipa que demonstra(va) rendimento.

No final, creio que o equilíbrio atual deve estar a ser repensado por Roger Schmidt e sua equipa técnica - porque os resultados e, mais que isso, os sinais (de desgaste, também físicos), devem levar a ajustes e, talvez ainda mais importante, a uma abordagem mais pedagógica e clarificadora na comunicação entre as partes.»