Dia 1 de junho.

No dia da criança, que coincide com a semana em que o Benfica foi campeão, o Maisfutebol viaja quarenta anos no tempo, para recuar ao início da década de oitenta e recordar os dias em que Rui Costa era, também ele, uma criança.

A viver intensamente o clube e a sonhar ser jogador, diz quem o conhece.

«O sr. Vítor, pai do Rui Costa, vivia o Benfica intensamente e o filho acompanhava-o sempre. Por isso muito antes de ser jogador das camadas jovens e apanha-bolas, o Rui Costa já sentia aquilo tudo como ninguém», conta o antigo companheiro Kaíca.

Kaíca, vale a pena recordar, é o diminutivo de Carlos Alhinho, filho do histórico Carlos Alhinho, que por isso mesmo praticamente cresceu nos balneários da Luz.

«Desde muito novo que se habituou a passar o dia no Estádio da Luz com o pai, a ver até os treinos e os jogos das modalidades, por exemplo.»

Rui Costa, recorde-se, começou a jogar futebol de salão no Damaiense e com nove anos foi tentar a sorte ao clube do coração. O treino de captação durou vinte minutos, para ele: o tempo que Eusébio necessitou para ficar impressionado com a técnica do miúdo. Estávamos então em 1981, quando esta história começou.

«Estavam 500 miúdos naquele dia, todos queriam jogar, mas pouco depois de ter tocado algumas vezes na bola, o Eusébio tirou-me da equipa e disse: Tu, menino, já chega», revelou Rui Costa muitos anos mais tarde, numa entrevista à BTV.

«Saí a chorar, a pensar que não ficaria, mas, no dia seguinte, soube que iria treinar com a equipa de infantis e do choro passei para a alegria num ápice.»

Desde então passaram mais de quatro décadas. Rui Costa foi campeão no Benfica como jogador, como diretor desportivo, como administrador e agora como presidente.

Mas tudo começou lá cima, no campo de treinos número quatro do Estádio da Luz, onde um pelado dos antigos desafiava os miúdos a traduzirem em futebol todo o talento que tinham. O miúdo da Damaia já se destacava e era até o capitão da equipa.

Ao fim de semana, quando o Benfica jogava em casa, tentava entrar nas escolhas dos responsáveis para ser apanha-bolas nos jogos dos grandes. As competições europeias, já sabiam, eram geralmente para os iniciados, pelo que sobravam para os mais novos as competições domésticas. Venha daí viver algumas das histórias desses tempos.

1. Uma distinção por bom comportamento que ainda valia 100 escudos de prémio

Kaíca não esqueceu o dia em que Rui Costa desatou num choro. Tinha na altura talvez uns dez ou onze anos, e calhou-lhe cair num erro que raramente cometia.

«Na altura toda a gente queria ser apanha-bolas e a escolha era feita de acordo com o comportamento, as notas e o compromisso com a equipa. O mister Arnaldo Teixeira, pai do adjunto de Rui Vitória, que foi o melhor treinador que tive e que foi a base da nossa educação desportiva, dava esse prémio pela assuidade, pelo comportanto, pelas notas na escola», começa por contar Kaíca.

«Ser apanha-bolas para mim não era uma novidade, porque eu cresci dentro dos balneários do Benfica, por ser filho de quem sou. Numa fase anterior, quando eu tinha aí uns oito anos, os apanha-bolas eram os filhos dos jogadores e portanto eu já ia nessa altura. Lembro-me que o Paulo, o roupeiro atual do Benfica, e que é filho do roupeiro Zé Luís, era um dos que ia comigo nessa fase.»

Mais tarde, passaram então a ser os miúdos dos infantis e dos iniciados a cumprir essa função, que funcionava muito como uma recompensa. Aconteceu exatamente quando Kaíca partilhava o balneário dos infantis com Rui Costa.

«Todos queríamos ser apanha-bolas, porque era sempre uma emoção estar com os craques, pisar a relva, brincar ao intervalo e assistir ao jogo. No fim ainda ganhava cada um 100 escudos, que íamos buscar ao departamento de futebol no fim do jogo.»

2 - Quando o ídolo Carlos Manuel lhe ofereceu uns calções, que acabaram confiscados

Fragata, alcunha de Joaquim Guerreiro, fez também parte dessa equipa durante os dois anos de iniciados. Acabou por fazer carreira em clubes mais pequenos da zona de Lisboa e depois foi treinador, entre outros, do Odivelas e do Damaiense.

«O ídolo do Rui Costa era o Carlos Manuel. Lembro-me de uma vez em que ele pediu os calções ao Carlos Manuel e ele deu-lhos, mas ficou logo sem eles: o sr. Cordeiro, que era o diretor da formação, tirou-lhos, porque não era permitido pedirmos nada aos jogadores na altura. Eu ainda levei uma vez umas meias do José Luís e outra vez uns calções do Romeu, mas escondidos, se não ficava sem eles», sorri.

«Eram as regras da altura: os apanha-bolas não podiam pedir nada aos jogadores. Se o fizessem, já sabiam, ficavam logo sem eles.»

Também Kaíca, de resto, se recorda bem dessa regra.

«Eram outros tempos, cada atleta tinha dois exemplares do equipamento principal e dois exemplares do equipamento secundário, e aqueles quatro equipamentos tinham de durar a época toda. Por isso não podíamos pedir-lhes nada. Aliás, mesmo naqueles últimos jogos da época, quando a equipa era campeã e havia invasão de campo, os jogadores chegaram ao balneário em cuecas. Mas se algum conseguisse chegar com as meias ou os calções, por exemplo, nem assim nós podíamos pedir-lhos.»

3. Partilhar o balneário com os ídolos e... admirar como faziam a barba dentro da banheira

Chiquinho foi outro colega de Rui Costa nessa equipa de infantis. Embora tenha também nascido em 1972, é de novembro, enquanto o atual presidente do Benfica é de março. O que na prática fazia com que andasse sempre um ano abaixo.

Por isso, quando Chiquinho foi infantil de primeiro ano, Rui Costa já era de segundo.

«Nós equipávamo-nos na zona onde os jogadores faziam os banhos de imersão, no fim dos jogos. Era uma sala no balneário, que tinha duas banheiras redondas, muito grandes, e os jogadores no final dos jogos iam para lá fazer banhos quentes», conta.

«Lembro-me perfeitamente que nós estávamos ali ao lado deles e ficávamos a admirar como o Bento, o Chalana, o Carlos Manuel e o Pietra e todos os outros faziam a barba enquanto tomavam o banho de imersão, sempre com um daqueles copos grandes de plástico na mão, com um pouco de água, para irem molhando a lâmina de barbear.»

Mais uma vez, Kaíca recorda também bem esse balneário e um pormenor que nunca lhe saiu da cabeça.

«Os roupões», atira.

«Nós vestíamo-nos ao lado deles, por cima de uma grade que delimitava as banheiras, e lembro-me que havia sempre uns roupões vermelhos pendurados, para os jogadores vestirem quando saíam do banho e iam para a sauna. Como o departamento médico ficava no outro lado, tinham de atravessar um túnel e iam de roupão, naturalmente.»

4. Quando os ídolos viram Rui Costa a chorar e lhe deram um casaco de fato de treino

Kaíca lembra-se de outra história que mete lágrimas.

«O Rui Costa chegou um dia atrasado e por isso já não ia ser apanha-bolas. Ficou desconsolado e começou a chorar, nós adorávamos fazer aquilo. E foi nessa altura que um craque da equipa principal, já não me lembro se o Carlos Manuel ou o Diamantino, o viu a chorar e veio interceder por ele, que não fazia sentido ter ali a criança a chorar e que ele tinha de ser apanha-bolas», refere.

«Para o compensar, ainda lhe ofereceu o casaco de fato de treino. E lá foi ele então para apanha-bolas, vestido com um casaco que lhe chegava aos pés, a correr atrás das bolas todo contente. Isso demonstra a família que o Benfica era naquela altura. Hoje os apanha-bolas quase nem se cruzam com os jogadores.»

5. Rui Costa podia escolher e queria quase sempre o lugar atrás da baliza

A história já tinha sido revelada por Manniche, em entrevista ao Observador, quando falava de uma visita de Rui Costa à Dinamarca em que os dois se conheceram. O agora presidente encarnado contou ao antigo goleador que costumava ficar atrás de uma baliza e corria muitas vezes a apanhar asa bolas que ele chutava para for a.

Chiquinho, antigo colega do português nos infantis, lembra-se bem disso.

«O Rui Costa já era o capitão de equipa e podia escolher, por isso escolhia quase sempre ficar atrás da baliza grande, a baliza do topo sul da antiga Luz. Às vezes escolhia ficar junto aos Diabos Vermelhos, mas era mais raro», conta Chiquinho.

«Eu era o mais novo de todos, não tinha voto na matéria e ia para a posição que ficava. Geralmente era na lateral. Depois os apanha-bolas juntavam-se todos antes do início do jogo, faziam um círculo no meio-campo e cada um seguia para a sua posição. Era um momento bonito, cada um a correr do centro para a sua posição.»

Kaíca adianta ainda outro pormenor que lhe ficou desses tempos.

«Nós vestíamo-nos com uns fatos de treino amarelos, que não era nada bonitos, mas o sr. Claudino, que era o diretor de campo, exigia que fôssemos todos bem compostos para dentro de campo. Então lá íamos com aqueles fatos de treino amarelos, que nem marca tinham. O sr. Claudino era muito rígido e tudo tinha de estar perfeito. Uma vez uma bola fugiu-me para dentro de campo e eu entrei no relvado para a agarrar, coisa que não podíamos fazer. Deu-me uma descompostura à frente do meu pai.»

6. As viagens para os jogos em carrinhas de oito lugares e o regresso a casa à boleia do pai de Rui Costa

Desse tempos, Fragata recorda um Rui Costa que aos dez ou onze anos já se destacava claramente dos outros pelo talento, mas não só: o antigo colega não esquece o benfiquismo da família, nem a amabilidade do pai do agora presidente.

«Jogar nas camadas jovens do Benfica não tem nada a ver com agora, naquela altura só havia aquela equipa do Benfica, não havia escolas de formação em todos os cantos, e éramos todos aqui da zona de Lisboa. Treinávamos no pelado, depois da escola, e íamos para os jogos numas Fords de oito lugares», conta.

«Eu, por exemplo, ia de autocarro para os treinos, no fim da escola. O Rui Costa ia e voltava sempre com o pai. Embora eles fossem da Damaia e eu de Carnide, muitas vezes no fim do treino o sr. Vítor levava-me a casa a mim e ao Paulo Cerqueira, que era nosso colega e meu vizinho, para não irmos a pé às nove da noite.»

Fragata recorda, de resto, um miúdo que aos dez anos se destacava de todos os outros.

«O Rui Costa já era craque. Muito, muito. E se fosse chamado ao escalão acima sobressaía na mesma. Jogava de cabeça levantada, já tinha aquela personalidade forte, pegava na bola, não se encolhia no choque, liderava e assumia o jogo todo.»

Fragata revela que nessa equipa de infantis havia três jogadores que se destacavam claramente dos restantes: Brassard na baliza, Rui Costa no meio-campo e Kaíca na frente. Mas Rui Costa, naturalmente, bastante acima de toda a gente.

Kaíca acrescenta a esse propósito um pormenor que podia fazer grande diferença.

«Ele para além do Benfica, às escondidas, ainda jogava futebol de salão na Damaia, por isso era muito tecnicista. Nós treinávamos no pelado, com condições muito pobres e ele já tinha uma qualidade técnica fabulosa. Por alguma razão jogadores como Neymar ou Ronaldo Fenómeno vêm do futebol de salão, aquilo dá-lhes grande qualidade técnica. E o Rui Costa tinha isso.»