Bom Senso FC. O nome é original e atrativo, embora pouco ou nada tenha a ver com a imagem de marca do futebol brasileiro, quase sempre marcado pela polémica e por situações bizarras.

Não se trata de um novo clube, muito menos de uma seleção, mas reúne um número inusitado de talentos brasileiros e não só. Tem como figuras de proa grandes craques como Alex (Coritiba), Alexandre Pato e Paulo André (Corinthians), Rogério Ceni (São Paulo), Zé Roberto e Dida (Grêmio), Seedorf (Botafogo) e Juninho Pernambucano (Vasco da Gama) para lá de mais sete dezenas de jogadores que atuam em vários emblemas do Brasil.

Recentemente, este Bom Senso FC («Movimento para um Futebol Melhor para Todos») ganhou um aliado de peso: Ronaldo Nazário de Lima, o «Fenómeno», um dos melhores jogadores brasileiros das últimas décadas e atual membro do Comité Organizador Local do Mundial-2014.

Em causa está um movimento de contestação ao calendário de jogos oficiais, imposto pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) para 2014.

Os jogadores dizem que chegou a hora de dizer «basta» e acusam a CBF de não respeitar os tempos de paragem a que os futebolistas têm direito e dizem-se prejudicados nas suas ambições de carreira.

O calendário de jogos, muito carregado pela sobreposição de provas oficiais no Brasil, é o ponto principal da contestação, mas ela estende-se a outras questões laborais, como férias, os períodos de pré-temporada e mesmo o direito a colocar representantes de jogadores nos conselhos técnicos das entidades de administração desportiva.

Ronaldo é o trunfo mais recente. Como antigo futebolista, é sensível aos argumentos do Bom Senso FC. Na posição que actualmente ocupa, tem voz influente junto da CBF e mesmo da FIFA. «Os dias de férias têm que ser respeitados», comentou, em evento sobre o Mundial-2014, o Melhor do Mundo FIFA em 1996, 1997 e 2002. «Para produzirem bem, os jogadores têm que ter tempo de descanso e um calendário adequado», reforçou o antigo craque de Barcelona e Real Madrid.

O calendário aprovado pela CBF prevê o início da época, em 2014, para 12 de janeiro, com os campeonatos estaduais e a Copa do Nordeste, com paragem a 4 de junho para o Mundial, apenas oito dias antes do jogo de abertura.

Isso obrigará os clubes da Série A a antecipar as respetivas pré-temporadas em 2014, já que todos os estaduais terminam a 13 de abril, com 21 datas disponíveis para organizarem os seus jogos (duas menos do que em 2013).

«Os jogadores não têm mais pernas», desabafou Rafael Sóbis, atacante do Fluminense, depois de conhecer este calendário.

Agora só em 2015

Rodrigo Muzell, editor do jornal «Zero Hora», responsável pela cobertura da CBF, aponta, em declarações à Maisfutebol Total: «Esta questão tem que ser debatida, mas é difícil chegar tão cedo a uma solução. A CBF tem que ouvir os jogadores, ainda que saiba que já não há tempo para mudar nada de essencial para 2014. Será realista pensar apenas numa alteração de calendários para 2015».

A questão central está na quantidade excessiva de jogos oficiais ao longo de um ano, para os jogadores que atuam no Brasil, entre os estaduais, o Brasileirão, a Copa do Brasil, a Copa Sul-Americana, a Libertadores e ainda os compromissos da seleção.

Para Rodrigo Muzell, «os jogadores têm razão nas suas reivindicações». Mas o jornalista chama a atenção para os diferentes interesses que estão em jogo: «Os clubes percebem a posição dos seus jogadores e sabem que jogos a mais para eles não é bom. Mas os clubes têm aqui uma posição dúbia, não é só a CBF. Isto porque já têm negociados os direitos televisivos de jogos, nomeadamente os estaduais. Isso dá-lhes uma verba importante. Para os clubes, não seria bom acabar com os estaduais, ou mesmo reduzi-los na sua dimensão».

A janela de janeiro e as transferências que não se fazem

Outro ponto que os jogadores que atuam nos clubes brasileiros consideram ser prejudicial no atual quadro tem a ver com o desfasamento entre a época futebolística na Europa (que vai de agosto a junho) e no Brasil (que corresponde ao ano civil).

«Fica fácil de perceber que isso prejudica o próprio valor de mercado dos jogadores que atuam no Brasil», destaca Rodrigo Muzell. «A janela principal no Brasil é a menos importante no futebol europeu. Enquanto aí na Europa se fala na paragem de inverno, é em dezembro/janeiro que no Brasil se fazem as principais transferências. Muitos jogadores deste movimento Bom Senso FC sentem-se prejudicados com isso e consideram que perdem oportunidades de transferência para o futebol europeu por causa disso», aponta o editor do «Zero Hora».

Ainda mais difícil em ano de Mundial

Esta situação torna-se especialmente problemática em ano de Mundial (para mais, a realizar no Brasil). O calendário para 2014, já aprovado pela CBF e base de toda esta contestação, encurta o tempo de paragem entre estaduais e Brasileirão e prevê encosta a fase decisiva do Brasileirão e da Copa do Brasil para depois da Copa.

«Quase nem dá para descansar, são demasiados jogos», admite Rodrigo Muzell. Qual é a solução, então? «Diminuir os estaduais, sem dúvida. Mas agora só em 2015», insiste o jornalista, sediado em Porto Alegre.

O problema é que os estaduais, para lá de terem contratos televisivos já negociados pelos clubes, ocupam quase quatro meses no início da época. «É tempo a mais», reforça Muzell.

Repensar os estaduais

«Há que repensar o modelo dos estaduais», admite Rodrigo Muzell.

O dilema desportivo é notório para os principais emblemas brasileiros. Em muitos casos, os estaduais limitam-se a definir qual dos dois ou três principais rivais será campeão do seu estado, resumindo-se o interesse das provas aos duelos entre os principais clubes.

«A maior parte dos jogos não tem grande interesse competitivo», assume o editor do «Zero Hora», para depois explicar. «Isso coloca um problema de gestão para os treinadores dos melhores clubes. Será preferível pôr na mesma os melhores jogadores nos estaduais ou poupá-los para o resto da época? O que acaba por acontecer é uma mistura entre os melhores jogadores e uma equipa de reservas. Talvez fosse melhor alterar esta situação».

Romário promove debate dia 21

O tema está lançado na agenda mediática e na mesa das reuniões das entidades no Brasil. Na próxima segunda-feira, dia 21 de outubro, a Comissão de Turismo e Desporto da Câmara dos Deputados vai debater as exigências do Bom Senso FC.

Quem marcou o debate não foi um debate qualquer: foi Romário. O «Baixinho» é deputado em Brasília, eleito pelo Partido Socialista Brasileiro, círculo do Rio de Janeiro. Nesse debate estarão presentes membros da CBF, da TV Globo e do Ministério do Trabalho, além obviamente de representantes do Bom Senso FC.

Na semana passada, o movimento dos jogadores apresentou ao presidente da CBF, José Maria Marin, um caderno de reivindicações, mas ainda não há qualquer resposta por parte do líder da Confederação Brasileira de Futebol.

Citado pela «Gazeta Esportiva», Romário acredita que o debate que agendou para dia 21 pode ajudar a seguir em frente nesta discussão: «O ambiente propício para esta troca de ideias, que visa melhorar o esporte mais amado pelo brasileiro, é a Câmara dos Deputados. Mas não só por isso, temos que lembrar que o calendário proposto fere leis trabalhistas».

Colisão com a FIFA

Com mais ou menos vontade de ceder, os diferentes atores do futebol brasileiro estão a começar a discutir a questão. Mas uma parte importante deste problema reside fora do Brasil e tem a ver com as imposições do calendário internacional.

O que diz a FIFA sobre tudo isto? A entidade liderada por Joseph Blatter determina um período de descanso para jogadores que participem no Mundial a partir de 18 de maio do próximo ano.

Ora, isso colide com o calendário já aprovado pela CBF. Quem entrar na lista dos 30 que Scolari pode apresentar até essa altura (ainda não os 23 definitivos) fica, por isso, excluídos de cinco jornadas do Brasileirão. Isso afeta não só atletas mas até estádios que vão acolher jogos do Mundial e seriam, também palco de partidas do Campeonato Brasileiro.

Isto porque o calendário da CBF prevê jogos do Brasileirão até 3 de junho, apenas nove dias antes do jogo de abertura do Mundial-2014, em São Paulo.

«O Comité Executivo estabeleceu que todos as selecções apuradas não possam usar os atletas nos campeonatos a partir de 18 em maio. Está claro. Fora a Liga dos Campeões, não podem jogar depois de 18 de maio esses jogadores. Para preparar esse grupo», esclareceu, a esse propósito, o secretário-geral da FIFA, Jérôme Valcke, citado pelo UOL Esporte.

O futebol brasileiro costuma ser dominado pelas confusões. Mas haver um movimento chamado Bom Senso FC até dá razões para acreditar que, desta vez, se poderá chegar a algum tipo de acordo… ou não?