O meu pai, coitado, feriu as mãos com folhas de chapa, enquanto inventava um novo verbo e uma profissão para o que lhes fazia. Dia após dia, de segunda a sexta a acabar em sábados, das 9 às 17 e além das 20, horas para lá da hora e o somar de mais uns trocos.

Quinar. Era uma palavra que se ouvia às refeições lá de casa durante a idade dos porquês – blargh para o esparguete com atum, duplo- blargh para o cheiro a iscas, que obrigavam sempre a um segundo prato para a criança, que, deixem lá, não podia deixar de comer porque precisava de crescer. Ou quando se preenchia as folhas das matrículas para o novo ano lectivo. Quinar era dobrar, sem ter alguém por quem dobrar os sinos. Quinar, anos depois, para nós, era bater a bota. Ir desta para melhor. Bater sem ser anunciado às portas do inferno. Morrer.

Não herdei do meu pai esse talento para dobrar a chapa com a pressão de guilhotinas imperfeitas. Mesmo que tenha sido ensinado por ele, homem de muita classe mas com a quarta mal feita, a usar um computador com contas e problemas geométricos que nunca lhe ensinaram a resolver, feitos de bissetrizes e ângulos delicados. E sei-o porque tentei. Um mês, talvez nem tanto, foi o que durei... Confesso-vos, também, que não tenho a paciência da minha mãe para aturar grávidas histéricas ali para os lados de Sete Rios, mesmo as mais ricas que carinhosamente chamamos de tias, e que podiam pagar as barbaridades de uma clínica privada. As boas gorjetas compensavam tudo, colecionava-as a minha mãe no bolso da bata.

Se tivesse de apostar num deles para a origem da maior parte do meu talento no jogo, a soma de genes de génio, ficaria perdido. Nunca vi o meu pai tocar numa bola, e era particularmente intolerante às jarras partidas, a cortinados rasgados, às
cautchus imaginárias feitas de meias brancas velhas, solidificadas pela fita-cola. Ou ao dinheiro gasto em cromos de Europeus e Mundiais em vez do croissant com fiambre e queijo de que nunca precisávamos. Nessa altura, eles não sabiam, mas vivíamos do ar e de sonhos. À minha mãe, que também era chata com isso e com muito mais, também nunca vi fazer uma trivela ou dar um toque de calcanhar e enfiar uma lata de coca-cola nos gigantes caixotes do lixo do nosso desperdício. Mas, será? É que, por outro lado, sempre teve o mau feitio de craque. Ao menos isso.

Esculpi o jeito que tinha nos pés de tijolo do meu pai. Nem com o direito, coitado, e eu com os dois, a fintar e a rematar, a marcar golos de antologia a guarda-redes com metade da minha idade, a fintar defesas e médios anões, porque os mais velhos já jogavam a sério e comecei tarde de mais. Ninguém queria que começasse. Andaram para ali a dizer que tinha jeito, mas sobretudo vontade, os rivais cresceram de tamanho e agressividade. Vieram os primeiros entorses, os jogos a sério, os golos aqui e ali, a passagem por todas as posições de campo, a reinventar-me.
Na baliza é que não, porra! Fui tão bom número 10 como lateral direito, o que diz bem da decisão difícil que tinha de tomar. Era o jogador mediano com mais talento da minha rua.

Felizmente, os meus pais não me passaram um apelido pesado para carregar nas costas. Nem talento. Porque se fosse filho de Cruijff também escolheria ser apenas Jordi. Ou seria esmagado por ele. Porque se fosse descendente de Pelé também acabaria guarda-redes, e talvez preso, para não ter de levar com o fantasma de cada golo falhado que me afastaria do milhar.


O futebol tem-nos dito, ao longo da sua incrível história, que o novo Maradona nunca foi ou será nenhum dos seus filhos, legítimos ou bastardos. Faz-nos prever que Enzo, cujo nome foi inspirado no príncipe Francescoli por culpa da classe que derramou sobretudo em Marselha, dificilmente será um novo Zidane. Ou, mais uma vez, contrariará o jogo a lógica?


A história ensinou-nos que não é escrita numa linha recta, tal como o talento não é transmitido por um gene autosomático dominante. Mas ambos são a soma das decisões de todas as encruzilhadas. Por muito orgulho que tenhamos neles, nos nossos pais, é esta a verdade. E eu tenho. Tenho orgulho no meu, quinador de primeira categoria, que nunca se sentiu atraído como eu pelo frenesim de tentarmos, jogo a jogo, o momento mais especial da nossa vida.

--
«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol. Pode segui-lo no FACEBOOK e no TWITTER. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.