O silêncio, primeiro.

Ouve-se o silêncio, claro que se ouve o silêncio.

O silêncio gélido, que atravessa o betão. Ouve-se o vento nos corredores como multidão em dia de jogo, a atravessar bancadas, a ameaçar as cadeiras ainda envergonhadas numa fila para nenhures.

Ouve-se o crescer do furacão, a partir do centro do relvado. A bola imaginária, companheira de sempre. Para a frente, ou para trás, que já não faz diferença.

O silêncio, farto de estar só. Põe para si próprio banda sonora de vinil, com a agulha a rasgar o plástico sem deixar riscos, a levantar linhas de som. O piano começa, acompanha o rádio de polícia. E nós junkies desesperados à frente de uma overdose que se insinua.

O clássico aproxima-se, chega com o seu andar femme fatale e música ambiente. E há gente a bater tachos nas varandas, o restolhar de violência doméstica, discussões nos bares. Toca o tema da Balada de Hill Street, antes de Furillo e Renko desatarem aos tiros. 

As gentes a fazerem-se multidão. A multidão a fazer-se legião. As bancadas cheias. As cores. Vermelhos. Azuis. O burburinho, o silêncio que já não está sozinho, trouxe amigos com quem brincar. O furacão que cresce do meio do grande círculo.

A pele de galinha. Os arrepios. O nervoso miudinho. O irrepetível som da bota a embater na borracha. Os putos com ar sonhador, que temos de beliscar para que vão comprar cachorros que substituam as unhas que já não temos para roer.

A bola cai redonda no pé de Óliver, depois de ter desenhado ésses com Salvio, Corona e Brahimi. Pizzi segue devagar, de lápis na orelha e projectos arquitectónicos megalómanos a caírem-lhe dos braços. Soares arranca com a força de um Ranger, imparável. André Silva joga pedra-papel-tesoura com Mitroglou. Marcas tu, ou marco eu?

Jonas e a classe que não se apaga, agarra-se à pele como pó de ouro.

Danilo e a força que não se esgota.

Fejsa e o muro que não se derruba.

Luisão, Lindelof, Marcano, Felipe. Maxi, Telles, Semedo. A vertigem de ser o centro do mundo. Cervi, Zivkovic, e Casillas com defesas do outro mundo e deste.

Ederson a abafar todos os surfistas que forem dar à sua praia. Uma onda gigante, de braços abertos. A grande área alagada.

Bola ao meio, bola no pé, a bola no centro de tudo. Um furacão que se levanta, do centro do relvado. O silêncio no vinil que chega ao fim sem fim, porque já não há alguém em casa que levante o braço do gira-discos. Ninguém respira. Nem pestaneja. Apito na boca.

Regressam, para já, os carros da polícia a Hill Street. Seguem-se os créditos.

O campeonato cresce como furacão no centro do relvado. Com a força de uma decisão esmagadora.

Apitou!

«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA» é um espaço de crónica, publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.