Há duas coisas que nunca, mas mesmo nunca, devem fazer-se. Primeiro. Ir às compras quando bate a hora das refeições, a não ser que o objetivo seja precisamente encontrar algo para mata-bicho. Não vão passar fome sem necessidade! Segundo. Escrever crónicas no meio de uma torrente de irritação.

Spoiler alert. O texto atirado para a vossa frente como um tapete estendido é uma crónica wanna-be, que se constrói a si própria enquanto se dá a ler. Eventualmente, o autor até estará irritado. Ou então finge, escondido atrás de um processador de texto e de um ecrã que terá certamente visto melhores dias, mesmo que já ninguém se lembre. Talvez até mesmo ria à gargalhada, ou, pelo contrário, martele em fúria as teclas, no limite da resistência do plástico, enquanto atira vapor para o ar, por entre os dentes semi-cerrados. É à escolha do freguês.

Modas várias. Fundamentalismos bacocos. Irritantes, certo? As críticas que se lançam quais mortos-vivos aos pescoços dos pobres árbitros – Rick Grimes não conseguirá nunca ter mãos para tantos walkers, a walkar de um lado para o outro. Apesar de terem deixado o luto, caminham ainda como se os perseguissem miséria e cadafalso. Os árbitros. Ameaçados. Injuriados. Insultados. Abutres a voar sobre as suas cabeças.

O ruído ensurdecedor só desaparecerá quando o factor-humano for erradicado, a decisão robotizada, o jogo reinventado. Para se ter a certeza absoluta e se dissipe a aura da perseguição, manipulação, que esconde erros e hesitações próprias, que se entreguem em mão todas as declarações de interesses. Do inventor ao CEO, passando pelo contínuo da empresa que registou a patente.

Lamento que Moisés, o primeiro, tenha despedaçado os primeiros mandamentos nas costas dos idólatras, assim que desceu do Sinai, impedindo a humanidade de gostar de mais do que um deus. Talvez seja por culpa de quem separou oceanos que tenhamos de pecar agora, ficando-nos com Messi ou Ronaldo, Pelé ou Maradona, obrigados a escolher um para toda a eternidade. Dividindo o nosso mundo ao meio, sem necessidade. Entre céu e inferno permanente.

Irrita-me que estejamos sempre à procura do fim da história, que só será a do próprio Fukuyama daqui a uns anos (esperemos que muitos, coitado), que não vai para novo, como mais ninguém vai. Que insistamos na medição da masculinidade em nome de um estilo, uma filosofia, uma equipa, um clube. Que não sejamos capazes de ser adúlteros no jogo, capazes de encher o coração com muitas paixões e amores de caixão-à-cova, daqueles quase fatais, mas ao mesmo tempo tão preenchedores.

Somos incapazes de gostar verdadeiramente do jogo, é um amor de conveniência, em que trocamos o bilhete por uma vitória, seja como e por quanto for. Para atirá-la à cara do colega, do vizinho, para aquela superioridade moral de que tanto precisamos. Para gozar, espezinhar, ser do grupo dos melhores. Pelo menos, não dos piores.

Irritam-me esquerdinos que não usem o pé direito, destros que tropecem no esquerdo, sem que seja a subir para o autocarro. Avançados que marquem um em dez tentativas, e dribladores de cabeça qual arado no chão. Avestruzes feitas futebolistas. Chateia-me que se corra sem pensar, ou se pense sem correr. Que se façam 30 passes, quando 20 são a mais, que se desperdice um três-para-um. Que se ache que não se tem culpa ou se a tem toda, que os jogadores sejam sozinhos os responsáveis, ou o treinador o bode-expiatório. Sobretudo, que o presidente assobie para o lado e nem use o caixote da reciclagem.

Irrita-me muita coisa, é verdade, umas mais do que outras. Sei que se me derem uma bola e um bocado de terra serei feliz. Quando quiserem atirar pedras, ponham quatro a fazer de postes, enquanto não convencermos os donos dos sintéticos, esses latifúndios cheios de sonhos e carrinhos sem dor, a deixarem-nos entrar.

Dispam a roupa de adepto, desmembrem-se das claques. Deixem-se ser Messis e Ronaldos outra vez, mesmo que estejam fora do prazo e mal conservados, com um pulmão a sair-vos pela boca. Queremos jogar pelo City e pelo United, pelo Chelsea e Arsenal. Real, Atleti e Barcelona. Milan, Inter, Juve. Sporting e Benfica e FC Porto. E todos os outros para que houver tempo. Podemos voltar a ser felizes.

Não se atrasem, deixem-me aproveitar que também eu já não vou para novo.


«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA» é um espaço de crónica, publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.