Nunca vos perseguiu uma ideia ao ponto de não vos deixar pensar em mais nada?

Uma que bloqueia todas as outras? Que não deixa espaço para outra coisa que não seja opções de resposta em teste de inspiração americana?

Provavelmente, não. Deve ser coisa minha. Só pode ser. Tem de ser. É. E, mesmo assim, surge-me ao meu caminho muitas vezes, quase sempre ao fim de semana ou à quinta-feira.

Podia, simplesmente, perguntar-lhe sem aviso, como o velho Gabriel Alves gostava de fazer quando saía em reportagem, de microfone em riste, para o serviço público

Zé, Zé! Kevin de Bruyne?

Será que gaguejaria? Será que este vosso amigo deixaria alguém como ele a debitar reticências?

Teria de esperar que Mourinho não desmontasse em segundos toda a estratégia da pergunta, as linhas, as entrelinhas, os verbos e os complementos diretos, indiretos e circunstanciais que cairiam a meio da questão e lhe tirariam tempo para pensar, e colocasse dois autocarros à frente da resposta, guardada por um Courtois preparado até para lobs do Charlie Adam.

Como? Como é que o melhor treinador do mundo e arredores não encontrou lugar para este 14 do Wolfsburgo – sim, o Wolfsburgo da Wolkswagen e um pouco do Sporting também –, agora com um X gigante em cima do tronco, que não dá para passar despercebido, e assinala umas das next big things do jogo?

De Bruyne.

Pé direito, pé esquerdo. Esquerda, direita, meio. Drible. Passe.

Cruzamento. Rasteiro. Cruzamento. Largo. Cruzamento. Junto da linha. Livre. Directo. Indirecto. Às vezes, não poucas, o golo. O golo chama-o, grita-lhe desesperado, quando parece não haver mais ninguém a quem passar.

As sardas mais altruístas da Bundesliga, suportadas por calções de fazenda, meias altas, casaco com escudo em cima do coração, e gravata. Ainda com os livros debaixo do braço e a mochila às costas, a correr atrás de uma bola que lhe rói os sapatos envernizados e lhe inferniza as tardes depois do lanche.

Pé esquerdo. Pé direito. Sem pedir licença.

A dar razão a uma das leis-Gabriel Alves, a do pé que está mais à mão, e o belga naquele estilo tão inconfundível, ainda mais que o de Paneira que, afinal, também era de Veloso.

Verdades palissianas (não é gralha, é homenagem ao La Palice, também ele um incompreendido) estas, que davam cor ao nosso futebol e ao dos outros, quando havia Mundiais, Europeus e taças continentais, que injustamente desdenhámos e recordamos com saudade. É outro assunto, não para agora.

Confesso que não entendo. Não compreendo os outros, os que se refugiam sempre no mesmo pé e não aprenderam a confiar no resto do corpo. Não estou com aqueles que passaram a vida com a bola colada ao direito. Ou apenas ao esquerdo.

Comecei este texto por não entender Mourinho, e mais do que uma dúvida existencial por texto é demasiado. O gaffer mais especial que existe até poderia responder-me com uma simples palavra. Quatro letras, com desdém

– Cesc!

Assim mesmo, como um uppercut fatal, depois de um soco no estômago. Cesc e De Bruyne, ter os dois seria altruísmo a mais?

– Sim, Zé. Mas... De Bruyne!

Deixe lá isso, mister! Nisto, talvez Guardiola me perceba melhor. Talvez o futebol seja apenas demasiado egoísta para nós os dois.

– Pep, está por aí?

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«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA»    é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias. Pode segui-lo no    FACEBOOK    e no    TWITTER   . O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.
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