Dani a jogar com 18 anos, e de cada vez que penso nisso

- Que desperdício!

Abano a cabeça várias vezes como se não percebesse, e até percebo. Mas tenho sempre o meu momento de incredulidade.

Vi melhor com 18 anos? Talvez não. Não seguramente.

Não aqui, mas ainda em nenhuma outra parte. Pode ser de mim que, com a idade, passei a sair pouco de casa, mas não creio.

O melhor do mundo nesse ano da maior idade, título que até podia ter sido criado apenas para si – apesar de ter a certeza de que nunca o reclamaria – não quis sê-lo também entre gente grande.

A bola colada-que-não-descola à canhota.

Visão periférica num relance. Passe redondo, acariciado.

O drible, sempre com outro em suspenso para encadear, com uma luz ao fundo do túnel.

As decisões açucaradas.

Bolas picadas sobre guarda-redes, a deitarem-lhes a língua de fora antes de passar a linha.

Tiros secos ou carregadinhos de efeitos e contra-efeitos, que hoje atenuariam as ressacas dos viciados em super-slow-motion. Voos de cabeça para o golo. E um sorriso rasgado no meio da baby face.

Completo. Talvez demasiado.

Pais, tranquem as vossas filhas! Dani chegou!

As GORDAS no tablóide. As letras, claro. Avisavam todo o reino. Tranquem as vossas filhas. Harry Redknapp, o treinador

Dani is so good-looking I don’t know whether to play him or fuck him

Talento. Muito. A partir de um certo ponto, estava bom. Dani não quis mais, porque nunca precisou. Talvez tenha sempre pressentido que aquilo não era para ele, que aquela vida era apenas uma passagem. Iria durar pouco.

Para nosso mal.

Londres, Amesterdão, Lisboa, Madrid.

A moda, depois a televisão. O adeus aos relvados aos 27 anos. Nove caps apenas por Portugal. E de novo a minha incredulidade. Posso?

- Que desperdício!

Mas a verdade é que nunca precisou. Não percebo e percebo. É um caso à parte.

Nem todos têm tudo, nem todos são demasiado completos. Lembro-me sempre da famosa resposta de robot-Crouch, que tem mais jeito para tiradas do tipo do que propriamente para o jogo.

A pergunta: o que seria ele se não fosse jogador de futebol?

- Probably, a virgin…

Não há inocência que dure muito tempo.

Acaba muito antes da maioridade. A oferta maior que a procura. O dinheiro, e a promessa de mais, chamariz e atracção pela vertigem. O estatuto, o mediatismo. Abrem-se portas fechadas para os outros, os mortais.

A inocência vai-se cedo, com o aparecimento dos primeiros estímulos. Os primeiros minutos na primeira equipa trarão os primeiros excessos. Os primeiros golos far-se-ão acompanhar pela euforia, e pelo sentimento de impunidade.

A noite. Divertimento. Discotecas. Mulheres. O álcool. A velocidade. Acidentes. Atrasos para os treinos. Faltas injustificadas. Convocatórias falhadas. Atrasos no crescimento. Novas oportunidades às vezes.

E, aí, ou apanham de novo o comboio ou ficam para sempre perdidos no deserto.

Dani é dos poucos que nunca precisou.

- Que desperdício!

Poucos serão como ele, mas nenhum morrerá virgem.

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«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA»   é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. Pode seguir o autor no   FACEBOOK    e no   TWITTER . Luís Mateus usa a grafia pré-acordo ortográfico.
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