Por vezes o estado mais difícil de atravessar é o de negação.

É um pouco como se fôssemos todos sonâmbulos e fizéssemos coisas de que nunca nos lembramos no dia seguinte. Coisas que não reconhecemos como nossas, como se fosse de todo impossível termos semelhantes atitudes.

É como se o único culpado fosse um outro-eu, para lá da nossa pele, um eu-negro, movido pelo dark side of the force. O nosso próprio Darth Vader, sinistro, de respiração assistida, que nos aparece nos sonhos mais reais.

Que não podem ser reais.

Qualquer um de nós, a certo momento da vida, teria de ter tido à sua frente um simples espelho, em que se reconhecesse a si próprio. Para que não restasse qualquer sombra de dúvida. Ou sequer uma dúvida razoável, como se ouve nos tribunais.

O futebol, talvez mais do que qualquer outro fenómeno, inclina esse rectângulo de jogo interior a favor do nosso Edward Hyde, ou do tal Darth Vader. Provoca-o ao ponto de que se mostre mais vezes e nós durmamos mais tempo de olhos abertos. Nós não, a nossa consciência. É esta quem dorme enquanto não nos reconhecemos a nós próprios.

É o futebol que faz com que percamos a racionalidade. Que pareçamos estúpidos, despidos de qual inteligência, digamos coisas sem nexo, façamos coisas disparatadas, em nome da paixão. Por esse lado, é uma doença. Transforma pessoas respeitadas e de discurso coerente em verdadeiros mentecaptos. Dispostos a defender o indefensável, a entrar em guerras sem fim à vista.

Em estado puro, é magia. Tanta magia. O espírito indomável de Gelson, os arranques a debitar cavalos de Guedes, a raça de André Silva. A velocidade de Jota. O futebol de rua de Renato. Bryan. Dost. Jonas. Pizzi. Adrien. Óliver.

Os antecessores. Madjer, Valdo, Balakov. Abdel-Ghani. Cubillas. Eusébio. Coluna. Lucho. Licha. Douglas. Luisinho. André Cruz.

João Pinto. Rui Costa. Jardel. Ricardo Gomes. Schmeichel. Preud’Homme. Mlynarczyk. Stromberg. Thern. Mozer. Cascavel. Mladenov. Kostadinov. Karoglan. Aimar. Saviola. Hulk. James. Ronaldo. Quaresma. Nani. Falcao.

Tantos! Obrigado a todos!

Hyde sussura-nos ao ouvido. Os teus são melhores do que os outros. Os teus é que interessam. O resto não presta, esquece-os.

Vader fica à espera na sombra, submerso na sua própria respiração. À espera de um movimento em falso, de uma má decisão, de uma réstia que seja de boa-vontade para levantar-nos no ar com um gesto e esmagar-nos os pulmões, extraindo todo o ar que nos dá vida.

Quer sentir ódio, quer que disparemos insultos, ameaças, desdém. Só assim ficaremos do lado negro da força, em definitivo.

Muitos de vós negam agora. Dizem para vocês mesmos que não são isto, que conhecem a fronteira. Que não emprenham pelos ouvidos – uma das expressões mais estranhas que já inventaram –, que não vão em propaganda, que sabem pensar pela vossa cabeça. Gostam de futebol como ninguém, garantem. De futebol. Do jogo.

O que é mais do que gostar apenas de um clube.

Muitos de vós negam que sejam isto e aquilo quando falam do jogo. Asseguram-nos que sentem para lá dos golos falhados, do resultado a queimar no marcador electrónico. Conseguem, dizem-me, encerrar de vez Hyde e Vader dentro do armário, para de lá nunca mais saírem. Garantem que não precisam de olhar-se ao espelho.

Negam que estejam em negação.

Cala-te, Darth! Vê o jogo!


«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA» é um espaço de crónica, publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.