Guarda-redes que é guarda-redes? Louco!

Só que maluquice não é só vestir cores garridas em camisolas inventadas a retalho na garagem lá de casa, somar defesas à-escorpião ou tentar fintar todos os Roger Milla velhinhos que apareçam à frente. Essa é uma loucura diferente, talvez mais saudável. Uma excentricidade vá, uma tontaria. Não é demência, esquizofrenia, ou simples bipolaridade.

Vejo os treinos de juvenis e juniores no clube de futsal aqui do bairro, e a ideia sai-me ainda mais preocupada

Um guarda-redes, hoje, só pode ser louco. Pírulas, doido-varrido. Tantã.

Esta é a altura em que começo a ouvir vozes, e vocês alertam-me que

Futsal defende-se sem luvas, parece um pelotão de fuzilamento a atirar sobre o mesmo homem. E no futebol nem tanto.

Têm razão, claro. Mesmo assim, guarda-redes tem de ser louco. Sintam comigo a pressão, a luta com o erro, com a própria cabeça. Seja como for, com ou sem luvas, quando se pensa em guarda-redes o que se pode pensar dele? Tantã.

Lembro-me do livro sobre Robert Enke, da doença. A depressão que mata. A luta contra a escuridão que nos consome por dentro. A responsabilidade de tirar sempre cem por centro no teste a cada fim-de-semana, mesmo que seja de resposta múltipla. Noventa-e-nove-vírgula-nove não chega para passar. Um deslize, falta de atenção, uma má interpretação, e o céu cai-lhes em cima da cabeça. Isso sim, é loucura.

O keeper começou por ser um pouco psicopata, um tipo que somava feridas de guerra e dentes partidos com os choques com os avançados, que voava com os joelhos esfolados para uma bola ao ângulo. Um Schumacher a cair sobre Battiston, um Stallone abrutalhado como estereótipo transportado para a sétima arte. Um Bento a lutar contra Adamastores e a sua própria estatura.  

Hoje, é tudo isso e mais alguma coisa. O gigante que abre os braços, como uma águia que se abate sobre a presa, aumentando o volume. Todos são Schmeichels, monstros de braços esticados. Não falham um cruzamento pelo ar, atiram-se aos pés de quem vem sem misericórdia. Saíram da baliza, evoluíram, são uma espécie melhorada, também predadores de avançados lentos a decidir.

São guarda-redes, líberos e centrais, e também na construção. Reis e senhores da sua área, e de vários metros para lá dela. Frios, caras de poker durante 90 minutos em finais de milhões.

Não haverá posição que esteja a mudar mais... E é a loucura que os faz crescer.

Tudo começa desde trás. O guarda-redes tem de dar fluidez. O central, hoje, não pode ser lento a decidir, mau a passar a bola, e até deveria ter tanto de Materazzi como de Ricardo Carvalho, jogar de cabeça levantada e ser duro e mau como as cobras. Se possível, canhoto pela esquerda, destro na direita. Ou decide bem ou é coberto por um enxame de abelhas devorador, que aproveitará todos os seus erros. Também os defesas têm de conseguir dizer ao médio-construtor que não se preocupe desta vez, e vá à vida dele.

O campo ganhou metros, profundidade. Os jogos decidem-se cada vez nas duas áreas, por muito redundante que, dito assim, possa parecer. É ali, de onde agora se constrói e onde se defende sem a linha defensiva, que está o ouro.

Onde Edersons e Neuers serão cada vez mais obrigados a aparecer. Por muito que os outros sejam também excelentes, e são, é das suas costelas, da sua loucura ao se reinventarem, que nascerá o guarda-redes do futuro.

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«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA» é um espaço de crónica, publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. O autor usa grafia pré-acordo ortográfico.