Há uma palavra que persegue os jogadores do futebol moderno: profissional.

À sombra do profissionalismo, que já existe há mais de meio século mas só nos últimos anos se tornou verdadeiramente relevante, mas à sombra do profissionalismo, dizia eu, fazem-se as exigências mais absurdas e atropelam-se os direitos mais fundamentais.

Um profissional de futebol não tem liberdade de expressão, por exemplo. Não pode reagir a um insulto e não convém ser atacado por uma reação nervosa.

Também não pode descontrolar-se, não pode criticar, não pode reclamar e não pode protestar. Mas sobretudo não tem o direito de emitir opiniões sobre tópicos realmente importantes, e já agora também não goza de permissão para refletir.

Dizem que são comportamentos pouco dignos para um profissional de futebol.

Um profissional de seguros, por exemplo, um profissional de hotelaria ou um profissional de saúde são seres humanos por direito: podem pensar e comentar, podem até ser livres.

Um profissional de futebol não: um profissional de futebol, como eles próprios repetem frequentemente, andam aqui para jogar futebol.

Ora no dia em que Johan Cruijff morreu, abandonando em definitivo este mundo, é oportuno referir que a herança que ele deixa ao futebol é difícil de calcular.

Basta recordar que os dois últimos campeões do mundo, a Espanha em 2010 e a Alemanha em 2014, foram construídos em cima dos conceitos futebolísticos de Cruijff.

Mas há mais.

As melhores ideias dos últimos anos partiram quase todas - a exceção mais óbvia será o Atlético, de Simeone - da essência do futebol total que Cruijff bebeu de Rinnus Michels e otimizou com conteúdos mais elegantes: posse de bola, inteligência, velocidade.

O legado do génio holandês é impossível de ser estimado, portanto.

Mas há uma coisa sobre a qual podemos ter a noção exata do tamanho: Cruijff pode não ter sido o melhor jogador, não é consensual que tenha sido o melhor treinador e provavelmente também não foi o melhor dirigente, como o Nuno Madureira escreveu aqui ao lado. Mas foi seguramente a pessoa mais importante na história do futebol. Porquê? Porque era sobretudo um homem inteligente.

O holandês nunca aceitou abdicar de nenhum direito.

Irreverente, atrevido, arrojado, nunca aceitou menosprezar a lucidez. Refletiu sobre o futebol e a vida, criou doutrinas e conteúdos, até teorizou sobre as novas ciências.

Não teve medo das palavras e de ser fiel ao carácter dele: uma têmpera forte. Um génio.

Há até um episódio que é lapidar. Em 1974, antes do Mundial da Alemanha, a federação holandesa fez um contrato de patrocínio com a Adidas. Pormenor importante: os jogadores não tinham direito a nenhuma percentagem desse acordo.

Descontente com a prepotência da federação, Cruijff arrancou uma das listas do símbolo da Adidas da camisola: ou antes, de toda as camisolas que utilizou nesse Mundial.

À custa dele, portanto, a marca alemã não teve nenhuma publicidade.

Ora numa época em que os jogadores de futebol venderam os princípios, aceitando abdicar as liberdades mais fundamentais em troco de muito dinheiro, é impossível não lembrar este carimbo que Johan Cruijff deixou no futebol.

Provavelmente é injusto utilizar o holandês como unidade de medida: era um génio, de uma inteligência sublime. Que não pode, por isso, comparar-se com ninguém.

Mas podem comparar-se os princípios. Que para Cruijff são inegociáveis: à prova de bala. Agora que o homem morreu, será possível ressuscitar o espírito dele?

Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dias