Já não me lembro de quem foi o médio defensivo inglês que um dia disse ter lido que de cada vez que cabeceava uma bola perdia um número dramático de neurónios.

Por isso abstraía-se de cabecear as bolas longas e mandava os centrais no lugar dele.

«Ser capitão também é delegar», justificou.

Lembrei-me desta frase a propósito de William Carvalho. O médio defensivo do Sporting não precisa de cabecear as bolas longas, nem de perder neurónios, para se impor em campo. Todo ele é classe e inteligência, como se viu, aliás, no jogo de terça-feira.

Vale a pena olhar ao pormenor, já agora, para o que William fez na receção à Suíça.

Pelo menos foi o que fez este que vos escreve com tanto carinho.

Pois bem, o médio defensivo realizou um total de 52 passes ao longo de todo o jogo. Sabe quantos foram errados? Um. É verdade, apenas um passe errado, ainda na primeira parte. Verdadeiramente impressionante, ou não?

Mas há mais.

Do total de 52 passes efetuados, apenas nove foram para trás. Vinte e quatro foram para a frente e dezoito foram lateralizados. Deste dezoito lateralizados, seis foram passes lateralizados longos para mudar o flanco do jogo: não foram passes de entregar a bola.

Refira-se já agora que dos vinte e quatro passes para a frente, cinco foram passes de rotura, a provocar desequilíbrios no primeiro terço defensivo da Suíça.

Se o leitor puder, já agora, no próximo jogo da Seleção Nacional faça um exercício curioso: não siga apenas a bola... siga a movimentação de William. A forma como se movimenta denuncia aliás todo o espírito da equipa. 

O médio recuperou dez bolas, mas mais do que isso foi curioso ver como na primeira parte, por exemplo, surgiu muitas vezes subido no terreno, a pressionar a Xhaka e a primeira linha de organização de jogo da Suíça. Com isso chamava a equipa a subir com ele e a pressionar mais adiantado. No segundo tempo, porém, sobretudo porque o autogolo de Djorou perto do intervalo mudou os dados, William subiu bem menos no terreno, tendo uma maior preocupação em segurar o meio campo e em apoiar os centrais.

O que é natural.

Talvez por isso tenha tido 37 intervenções em jogo na primeira parte e apenas 30 na segunda.

Na primeira parte preocupou-se em oferecer linhas de passe seguras para circular a bola, no segundo tempo teve um cuidado muito mais posicional e defensivo.

William é muito isto, no fundo: movimentação elementar, inteligência do posicionamento e uma capacidade rara de tornar o futebol uma coisa simples.

Mas este é um texto de elogio a William Carvalho?

Gostava que fosse, leitor, mas infelizmente não é. É também um texto de alerta.

É um texto de alerta porque é cada vez mais raro ver nos relvados portugueses este jogador. A saída de Adrien Silva, somada à chegada de Battaglia, levaram Jorge Jesus a fazer uma adaptação: o argentino foi tornado numa espécie de médio defensivo e William foi convidado a libertar-se para uma espécie de oito.

Um duplo erro.

Em primeiro lugar porque Battaglia nunca será um trinco ao nível de William. Depois porque William nunca será um médio centro ao nível do que é como trinco.

Desde logo porque não tem meia distância nem chegada à área adversária. Mas também porque não tem velocidade, não é um jogador intenso e tecnicamente não é forte.

Obrigar William a jogar mais adiantado no terreno é estragar o melhor médio defensivo português, é desbaratar talento, é debilitar um tratado de inteligência e posicionamento.

Os números estão aí para o provar: e eles não enganam.

Querer fazer de William um médio centro é o mesmo, no fundo, que obrigar um génio a cabecear bolas, e matar neurónios, quando tem ali ao lado um central para o fazer.

Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dias