Já contei nestas páginas a história de Abdón Porte.

Ele era o capitão do Nacional de Montevideu, quando em 1918 foi informado de que o clube decidira que estava na altura de pendurar as chuteiras: ia passar a treinador.

Ora no início do séc. XX, o cargo de treinador ainda não tinha o peso que tem hoje. A maior partes dos clubes nem sequer tinha treinador. Abdón Porte contava apenas 27 anos e achou que aquilo era uma despromoção: uma forma de o afastar do amor das bancadas.

Por isso no dia em que foi informado da decisão da direção foi jantar com os companheiros para celebrar o título de campeão. Comeu, bebeu, sorriu. Falou de futebol como fazia todos os dias. No fim do jantar regressou ao estádio do Nacional, caminhou pelo relvado até ao centro do campo, puxou de uma arma e deu um tiro no coração.

Com ele deixou duas cartas: uma para um médico, a quem pedia que confortasse a família, e outra com uns versos dedicados ao Nacional, o clube que lhe enchia a alma.

Abdón Porte era um trinco de alma cheia, capitão de um clube histórico e internacional uruguaio. Tinha uma carreira gorda, portanto, uma carreira robusta e bem nutrida, quando de repente lhe propuseram abdicar de tudo o que o futebol lhe dera.

Para ele foi demasiado.

Ora lembrei-me desta história quando pensava no que Jorge Jesus fez esta quinta-feira: na renovação com o Sporting por mais uma época, que é sobretudo uma afirmação de que podem terminar as conversas de café, o treinador vai manter-se em Alvalade.

Não tenho dúvidas de que o FC Porto sonha contar com Jorge Jesus e de que Jorge Jesus sonha um dia treinar o FC Porto. Mas tenho dúvidas, sim, que o treinador pense que a concretização desse sonho não tem preço: vale a hipoteca de toda o capital adquirido.

Jesus, recorde-se, não saiu bem do Benfica.

Podia ter saído, mas não saiu: não sentiu que o Benfica tenha sido justo com ele e por isso abriu uma frente de antipatia. Mas não se importou com isso: em Alvalade recebeu toda a ternura que precisava para sentir que fez a escolha certa.

Sair agora de Alvalade e abrir uma nova frente de antipatia, porém, era virar praticamente todo o país contra ele: e isso, meus caros, era demasiado. Até para Jorge Jesus.

O treinador leonino tem muito amor-próprio, tem autoestima, tem muito orgulho e até uma certa altivez, mas como todos os heróis do futebol precisa de vez em quando de abrir os braços e correr em direção aos adeptos, para sentir a ternura das bancadas.

Por isso, lá está, não podia sair agora de Alvalade.

Antes de o fazer precisa de deixar obra feita no Sporting. Precisa de ganhar um espaço na eternidade do clube, e um lugar no coração dos adeptos.

Depois disso, sim, pode partir para outros lados, e até quem sabe tentar concretizar o sonho de ser campeão nos três grandes. Mas agora não, agora é muito cedo: sobretudo é muito cedo para somar mais inimizades para além das que já existem.

É que, como Abdón Porte, Jorge Jesus não está preparado para deixar de sentir o calor dos adeptos. Afinal de contas todos precisamos de ser amados.

«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dias