Há um par de anos tive o prazer de fazer uma entrevista rara a Dave Richards. Sir Dave Richards, aliás: foi presidente da Liga Inglesa durante catorze anos, na mudança de milénio, podendo por isso colher os elogios de uma mudança feliz.

Ora durante essa conversa, e quando o tema se desviou para o futebol português, Dave Richards confessou ter a ideia que aqui se fala demasiado de árbitros e de suspeição.

«Em Inglaterra não é permitido falar de árbitros», acrescentou. «Porquê? Porque é errado, é uma pressão inaceitável. Não se pode falar de árbitros e ponto final.»

Nessa altura fiz de advogado do diabo: atirei-lhe com o argumento recorrente em Portugal de que proibir qualquer tipo de declarações é um ataque à liberdade de expressão.

«Liberdade de expressão? Tudo bem, se querem liberdade de expressão podem tê-la. Falem do jogo. Mas não critiquem o árbitro em público. Não critiquem o espetáculo, não critiquem o adversário, não critiquem o presidente e não critiquem o treinador em público. Não é permitido, ponto. Se o fizerem, vão ser punidos e multados. Acima de tudo tem que haver respeito pelo jogo.»

Nessa altura olhei para o senhor, um simpático bonacheirão, de boas maneiras e faces rosadas, e curiosamente não vi nele um ditador.

Vi apenas um homem determinado em defender o jogo: que sabia exatamente o que devia fazer para tornar o espaço do futebol mais saudável.

Ora se o leitor não for um Pinto da Costa, que há coisa de quinze dias era a única pessoa no país que desconhecia a visita de um grupo de Superdragões ao restaurante do pai de um árbitro, se não for um Pinto da Costa, dizia, já percebeu que o espaço do futebol português é um bocadinho de tudo, menos saudável.

Tenho dificuldades em recordar-me, aliás, de uma época em que o ar tenha sido mais irrespirável.

Só se fala de penaltis e foras de jogo, de árbitros e árbitros assistentes, de prendas, de agressões, de suspeição, suspeição, suspeição. O futebol português está coberto de negro: parece uma guerra e as munições nunca mais acabam.

Nesta altura era importante haver uma intolerância social para com esta violência, mas infelizmente acontece precisamente o contrário: imprensa, adeptos, treinadores, todos embarcam no comboio da desconfiança e assumem que esta hostilidade faz sentido.

Não faz.

O que faz sentido é proteger o futebol, valorizar o produto, tratar o jogo como ele merece ser tratado: como um espetáculo que existe para nos divertir e emocionar.

Dave Richards confessou-me até que com o tempo o futebol inglês se tornou o espaço das famílias e muitas vezes, quando algum adepto dizia um palavrão, alguém ao lado lhe chamava a atenção para a presença de crianças na bancada.

Infelizmente o futebol português tem uma capacidade rara de empolgar agressores: desperta nas pessoas, as que são perversas e as que não o são, os piores instintos.

Como se combate isto? Com tempo. Através de um trabalho árduo, longo e austero.

Que começa exatamente por onde começou este texto: pela necessidade de legislar. Proibir, no fundo, os dirigentes de encharcar o futebol de suspeitas e ódio.

Claro que isto já foi tentado no passado e não resultou, porque mais tarde ou mais cedo os clubes acabam por reprovar a ideia em sede de Liga, argumentando que têm o direito à liberdade de expressão, lá está.

O que nos leva a outro problema: nas questões do poder, seja ele interno ou externo, os clubes comportam-se como pequenos regimes ditatoriais que exigem democracia em todo o lado, menos dentro deles próprios.

Têm presidentes que se eternizam no poder, têm claques que muitas vezes são braços armados da ideologia, têm exercícios de propaganda através dos meios próprios e das aparições públicas.

Fazem o culto do líder, colocando-se em bicos de pés, proíbem os jogadores de fazer declarações, limitam a liberdade de expressão dos treinadores, no fundo só os presidentes podem falar, as vezes que quiserem e nas circunstâncias que quiserem.

Reagem mal às críticas, sobretudo internas, processando, ameaçando e perseguindo os próprios adeptos.

Enfim, os sinais estão todos lá.

Por isso, e porque acabar com a suspeição, com a sujidade e com as suposição de corrupção era acabar com a influência deles no espaço mediático, não aceitam que se punam as declarações sobre arbitragens, as especulações, as acusações infundadas.

No dia em que isso acontecer, no dia em que se falar do jogo, os dirigentes perdem espaço: e perdendo espaço deixam de poder fazer o culto da personalidade.

No fundo, lá está, os clubes são regimes ditatoriais que exigem viver em democracia.

Portanto, e por uma vez, sou obrigado a concordar com Manuela Ferreira Leite: o futebol português precisa de seis meses de ditadura para colocar isto tudo na ordem. Para afastar do espaço mediático a sujidade, a suspeição, o peso e o cinzentismo do jogo.

O futebol tornar-se-ia o que ele deveria ser, um espaço de cor e emoção, onde se falasse dos grandes jogos, dos grandes jogadores e dos grandes golos.

Os dirigentes, esses, poderiam sempre continuar a falar de corrupção e de suspeição, mas no espaço onde essa conversa faz sentido: nos gabinetes no Ministério Público.

Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sextas-feiras de quinze em quinze dias