Ruben Semedo já não é um miúdo que pode portar-se mal, ouvir uns ralhetes e amuar. Já não pode faltar aos deveres. Fugir aos impostos. Beber uma garrafa de gin por dia.

É um homem que já chegou àquela fase da vida em que tem de ser um homem.

O que ele fez foi grave, muito grave, demasiado grave. Vai ter de pagar pelo que fez e, presumivelmente, vai pagar mesmo. Porque a justiça encarregar-se-á de lhe apresentar a fatura.

Para já vai ficar preso, provavelmente muito tempo, e vai com isso comprometer uma carreira de jogador de futebol, e uma vida de conforto que podia vir a ter: um conforto raro e muito improvável para alguém que nasceu muito longe de um berço de ouro (ou de prata, ou até de bronze).

É justo que assim seja, o que alegadamente ele fez foi de facto de uma violência feroz.

Mas o que aconteceu com o jogador em Espanha não é só uma lição para o futuro de outros miúdos: é um alerta para os clubes, e para a própria sociedade.

Ruben Semedo cresceu no meio de grande agressividade, até familiar. Havia, e provavelmente continua a haver, no núcleo mais próximo histórias de criminalidade e violência. O pai foi preso quando ele tinha apenas cinco anos e ele passou quase uma década sem o ver.

A mãe separou-se e teve durante algum tempo de trabalhar para sozinha alimentar uma família de três pessoas: ela, o filho e uma filha. Mais tarde voltou a juntar-se e teve mais dois filhos.

A história da mãe de Ruben é a história de muitas mães dos bairros desfavorecidos: uma senhora dedicada ao trabalho e a sustentar a família. Tinha de sair de casa cedo, voltar tarde, deixar os filhos entregues às companhias e ao problemático bairro de Casal de Mira, na Amadora.

Ruben Semedo era portanto um jovem de risco.

A verdade é que enquanto esteve no Sporting esteve relativamente controlado. Não deixou de ser envolvido numa ou noutra polémica, mas nada de muito grave.

Quem lidou com ele, de resto, sempre se referiu ao jogador como um jovem simpático e tranquilo. Duro dentro de campo, às vezes até agressivo, mas tranquilo fora dele. Um jovem que apadrinhava torneios e que respondia sempre positivamente quando era chamado a conviver com crianças do Futebol Benfica, o popular clube lisboeta.

Eu próprio tive oportunidade de o entrevistar duas vezes, e de falar com ele em mais um par de ocasiões, e sempre me pareceu alguém cordial e sossegado. Tinha sido pai e dizia que a prioridade era estar com a filha bebé: dedicar-se ao futebol e ser uma boa influência para ela.

A mudança para Espanha, no entanto, coincidiu mais ou menos com a separação da namorada, mãe da filha dele. Ruben Semedo ficou novamente sozinho, ou quase: em Espanha tinha a companhia de dois amigos de infância, do bairro onde cresceu.

Em cerca de meio ano, em Espanha, envolveu-se em três casos de polícia, com episódios de enorme violência, armas de fogo, assaltos, enfim.

Nessa altura voltou a tornar-se, portanto, um jovem de risco.

Curiosamente não é o primeiro a passar por isto. Basta lembrar, por exemplo, o caso de Miguel: enquanto jogou no Benfica esteve sempre controlado, quando se mudou para o Valencia passou por episódios de violência, também com armas de fogo e companhias poucos recomendáveis.

Por que é que isto acontece?

É difícil ter certezas, mas podemos imaginar que se trata de jovens a quem falta uma estrutura de apoio sólida e madura. Ruben, por exemplo, cresceu no seio de uma família desestruturada. Nestes casos as amizades de infância são muitas vezes encaradas como família: como uma irmandade que faz parte dos próprios jovens, que é preciso defender, apoiar e adotar.

O problema é que estas amizades nem sempre são benéficas: são jovens com percursos e objetivos de vida diferentes.

É aqui que a sociedade e os próprios clubes falham.

Sobre a sociedade não é preciso dizer nada: os guetos a que condenam estes jovens, cheios de más influências e vícios, é um tema demasiado explorado para merecer mais de duas linhas.

Já a situação dos clubes é diferente. No caso de Ruben Semedo, o Villarreal fez um investimento altíssimo na contração. Entregou ao jogador um ordenado estratosférico, uma boa casa, um bom carro, e esperou que o dinheiro fizesse todo o trabalho que ele devia fazer.

É típico deste nosso mundo: achar que as pessoas se movem a cifrões.

Não movem. Ou pelo menos nem sempre movem. Porque o dinheiro não é tudo na vida. Há, por exemplo, valores de fidelidade. Amizades. Códigos de fraternidade. No caso de Ruben, amizades que o arrastaram para uma vida de pouco profissionalismo e até, alegadamente, criminalidade.

Enquanto esteve no Sporting, lá está, enquanto esteve próximo de pessoas que o conheciam desde criança, o central conseguiu manter-se na linha. Em Espanha não terá tido o mesmo apoio, o mesmo acompanhamento, a mesma paciência. Um pouco como aconteceu com Miguel.

Não quer com isto defender-se Ruben Semedo. Pelo contrário, não tem desculpa, deve pagar pelo que alegadamente fez e espero que, se for o caso, seja castigado exemplarmente. Não merece nenhum elogio: elogios merecem jovens como Carlos Mané ou Gelson, que vieram de meios semelhantes ao do central e souberam crescer e amadurecer. Souberam ser homenzinhos.

Mas Ruben Semedo não é o único culpado.

Os clubes não podem pagar fortunas e lavar as mãos - como a sociedade não deve soltar este riso de escárnio -, sem se preocuparem em conhecer o ser humano por detrás do jogador. Os riscos, as ameaças e as agonias deles.

Nesta altura toda a gente usa o mesmo argumento: foi um rapaz que teve tudo e deitou tudo fora. Mas claramente Ruben Semedo não tinha tudo.

Porque as nossas vidas não são todas iguais.

Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, editor do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dias

artigo atualizado: hora original 23:49, 22-02-2018