O centro de treinos do Corinthians foi invadido, os jogadores foram agredidos por alegados adeptos do próprio clube, alguns deles andam com segurança privada e todos os futebolistas ameaçam paralisar a próxima jornada do Campeonato Paulista, no próximo fim de semana. A quatro meses do Mundial, o Brasil e o seu futebol voltam a ser notícia por razões erradas. A juntar às dúvidas sobre os estádios prontos a tempo, às confusões em torno das subidas e descidas no Brasileirão, à violência nos estádios, ao momento de instabilidade social no país.

Foi terror o que se passou no sábado. Uma centena de adeptos rasgou a rede do centro de estágios do Corinthians, que aliás será um dos pontos de treino oficiais do Mundial 2014, sede do Irão de Carlos Queiroz, e entrou à força. 

Os invasores, uns com os rostos tapados, outros descobertos e alguns conhecidos como membros das claques organizadas do Timão, entraram por ali dentro e tentaram caçar os jogadores, que começavam a subir para o treino. Apertaram o pescoço ao peruano Paulo Guerrero, o jogador que deu ao Corinthians a vitória no Mundial de clubes em 2012. Houve bens bens roubados, como dinheiro e telemóveis. Houve quem se escondesse, em pânico.



Uma reportagem da Globo divulgada nesta quarta-feira conta como quatro jogadores das camadas jovens, Walter, Danilo Fernandes, Julio César e Rafael, se refugiaram na casa de banho de um quarto durante mais de duas horas, e de como a porta do quarto ainda mostra as tentativas de arrombamento. Os jogadores do plantel principal ficaram barricados durante três horas no balneário até os ânimos acalmarem. «Temi pela integridade física dos atletas. No início, estava fora de controle», relatou o treinador Mano Menezes, que tomou a iniciativa de tentar conversar com os invasores para acalmar os ânimos, e resumiu depois assim o que sentiu naquelas horas: «Quando acontece algo assim, você sente uma vontade muito grande de ir para casa.»

A invasão aconteceu três dias depois de uma derrota pesada do Corinthians no terreno do Santos, por 5-1, e os indivíduos que fizeram aquilo elegeram como alvos os jogadores. Mas no meio da confusão também houve funcionários do clube agredidos, a mesma reportagem mostra por exemplo um médico com o cotovelo ferido.

Havia jogo com o Ponte Preta no domingo e os jogadores ameaçaram não comparecer. O clube pediu mesmo o adiamento da partida, mas a Federação paulista e a Globo, detentora dos direitos, responderam que já não havia condições para isso. Acabaram por ir, perderam por 2-0, agravando a sua situação no Paulista, onde são terceiros e penúltimos do grupo B, com seis pontos em cinco jogos.

«Os jogadores não tinham a menor condição emocional de entrar em campo. O principal deles era o Paolo (Guerrero), que foi esganado no seu pescoço. Houve aqui um sentimento de temor durante duas horas», relatou Mário Gobbi, presidente do clube, à rádio Jovem Pan, ele que numa primeira instância foi criticado pelos jogadores por não ter tido uma reação suficientemente enérgica ao que aconteceu. Os problemas do Corinthians com as claques organizadas não são de hoje (há um ano, incidentes num jogo da Libertadores resultaram na morte de um adepto na Bolívia) e o dirigente é acusado de não ter feito tudo o que está ao seu alcance para resolver o assunto. 

Nesta terça-feira, os jogadores do Corinthians emitiram um comunicado duro, em que dizem que não tolerarão «mais nenhum desrespeito». «Estamos fartos com a irracionalidade e com os atos de violência impunes que envolvem inúmeras situações ligadas ao futebol. As cenas grotescas vividas neste último sábado por nós jogadores e por todos os funcionários do SCCP determinam que uma tragédia sem precedentes está prestes a ocorrer no ambiente de trabalho de qualquer clube de futebol profissional no país e nós não seremos coniventes com isso. É preciso dar um basta e unir uma força tarefa capaz de oferecer segurança aos profissionais e aos torcedores de bem», dizem.

«Sabemos que esta não é a primeira, mas deveria ser a última vez que marginais ligados às torcidas organizadas invadam propriedade privada, agridam jogadores e funcionários do clube e os ameacem com armas. Sabemos também que estes mesmos marginais, infiltrados nas torcidas de todo o país, provocaram mais de 90 % das brigas nos estádios nos últimos anos, causaram mortes e afastaram o público e suas famílias dos campos de futebol», prossegue o comunicado, lamentando ainda que a equipa tenha sido obrigada a ir a jogo com o Ponte Preta: «A nossa vida e a nossa segurança valem mais do que qualquer contrato ou interesse político/financeiro/particular de terceiros.»

O presidente do clube também levanta outra questão: este é um problema que tem por trás um cenário social complexo, observa Gobbi, num país que tem vivido em tensão latente nos últimos meses. Os protestos durante a Taça das Confederações foram a face mais visível, a contestação que expõe a desigualdade social e a corrupção no Brasil tem sido recorrente desde então e o futebol, como acontece tantas vezes, está na primeira linha da manifestação destes sintomas.

«É uma coisa de segurança pública. O futebol é um desporto. Temos que voltar a fazer o futebol ser apenas um desporto e não um meio de vida. O futebol não é a vida de ninguém. Não é porque ganhou que a sua vida está bem e não é porque perdeu que está mal. Torça, vibre e fim de papo. Eu fiquei 23 anos na fila sem título. Eu abaixava a cabeça, chorava e ia para a minha casa. Isso é uma afronta a uma cidadania, a um país, uma nação, a tudo», desabafou: «Eu lamento profundamente. Já faz um bom tempo que o futebol deixou de ser um desporto, é algo que transcende o desporto. Virou a válvula de escape de muitos e é um problema social muito grande. Nós estamos sem rumo. É só mais um facto de tantos outros que surgem no nosso quotidiano. O que aconteceu aqui dentro do CT do Corinthians não foi um protesto comum. Aqui invadiram, bateram em mulher, faxineira, uma coisa horrível.»

O clube entregou as imagens de segurança do centro de treinos à polícia. Algumas ficaram danificadas durante o ataque (outras aparentemente desligaram-se uns minutos antes, relata a imprensa brasileira), mas o presidente do Corinthians defende que são suficientes para identificar muitos dos agressores, alguns dos quais estarão ligados às principais claques do clube.

Quanto aos jogadores, estão mesmo dispostos a avançar para a greve. A consciencialização e sentido de grupo dos futebolistas no Brasil cresceu nos últimos meses, impulsionada pelo Bom Senso FC, um grupo de jogadores que se juntou para contestar calendários e outros direitos que consideram estarem a ser postos em causa. O Bom Senso, em conjunto com Sindicato dos futebolistas de São Paulo, já notificou a Federação e os clubes para a intenção de greve do próximo fim de semana. E ninguém duvida de que nunca esteve tão perto mesmo de acontecer uma greve de jogadores no futebol brasileiro.