Quando, depois de uma «tainada» no último dia de férias, na Alvarenga natal, um grupo de amigos emigrados no Brasil decidiu escrever nas placas e estradas o seu amor pela terra, estavam longe de imaginar o impacto que isso iria ter na história de Alvarenga.

Naquela madrugada de verão de 1966 ou 67, os rapazes só queriam extravasar o sentimento que nutriam por aquela freguesia do concelho de Arouca e a revolta que sentiam por não lhes ter sido concedida a autorização militar para ficar três meses na terra que os vira nascer.

Mas só havia duas alternativas: ou ficavam e sujeitavam-se a ser mobilizados para combater no Ultramar, ou engoliam a revolta e embarcavam de regresso ao Brasil.

Escolheram a segunda alternativa mas, sem saberem, acabaram por deixar tatuada na história de Alvarenga toda aquela revolta que sentiam à flor da pele.

«Na última noite antes desse grupo partir, fizemos um jantar de despedida e, já de madrugada, com os copos, houve um que começou a gritar: 'Alvarenga é a Capital do Mundo. Eu quero ficar na Capital do Mundo'. E com  aquilo, saíram para a rua e foram escrever Capital do Mundo nas placas e nas estradas», relata animado Edgar Soares, hoje com 66 anos, e que acompanhou o momento.

«Depois de eles irem embora, houve quem apagasse aquilo, mas de vez em quando, lá voltava a aparecer pintados nas placas: Alvarenga – Capital do Mundo», resume o homem que, mais tarde se tornaria presidente da Junta de Freguesia de Alvarenga, vereador da Câmara de Arouca e ajudaria a fundar o Grupo Desportivo Santa Cruz de Alvarenga, que disputa a I Divisão da AF Aveiro.

Outra coisa que aquele grupo de amigos emigrantes estaria, por certo, longe de imaginar é que meio século depois, seria o clube da terra a criar uma ligação quase umbilical com o Brasil.

Mas foi mesmo isso que aconteceu. No ano passado, e apesar de jogar na II distrital de Aveiro – que viria a vencer – o Alvarenga avançou para a criação de uma SAD, que conta com um forte impulso vindo do outro lado do Atlântico. Hoje, são seis os jogadores brasileiros que jogam no clube, aos quais se podem acrescentar dois avançados que foram emprestados a uma equipa da I Liga... da Índia.

Trocar São Paulo pelo amor a Alvarenga

Apesar do espanto que o caso possa suscitar, só para quem desconhece a história de Alvarenga é que esta relação é tão estranha. E voltamos a Edgar Soares para explicar o contexto. 

«Alvarenga é uma terra de emigrantes e não deve haver nenhuma casa na freguesia que não tenha alguém com ligações ao Brasil», assegura.

É esta a frase que nos ajuda a perceber a razão daquele «eu sou de Alvarenga, nasci aqui», que escutámos com um sotaque paulista perfeito. Marcos Rodrigues, actual vice-presidente do Alvarenga, partiu para o Brasil ainda antes de completar um ano de vida. A sua família foi mais uma das que deixou a remota freguesia arouquense e rumou ao outro lado do Atlântico. Mas se Marcos deixou Alvarenga, a Capital do Mundo nunca o deixou a ele. 

«Eu vinha cá de férias todos os anos e as minhas raízes sempre estiveram aqui. As melhores memórias que guardo da juventude são as das aventuras e amizades que eu fazia aqui», declara Marcos Rodrigues assumindo «um arrepiozinho só de lembrar.»

Com essa ligação sempre presente, quando Marcos foi desafiado por uma empresa de agenciamento de jogadores para ajudar a fazer a ponte entre o Brasil e Portugal, aceitou o repto, com uma condição: tinha de ser em Alvarenga.

Com luz verde para avançar, Marcos falou com amigos que tinha na terra natal, onde conhecia toda a gente e todos o conheciam a ele, e avançou com a proposta, que foi aceite após algumas reuniões onde se discutiram os prós e contras de uma parceria deste género.

«O que eu mais quero é ajudar a minha terra. E trazer estes jogadores para cá faz com que venha cá mais gente. Nos jogos em casa, vêm os adeptos dos outros clubes e enchem os restaurantes. Tudo isso é ajuda para Alvarenga», orgulha-se.

Numa freguesia com cerca de 1500 habitantes e num clube com aproximadamente duas centenas de associados, o sucesso que o Alvarenga teve logo no primeiro ano da SAD – foi campeão, derrotando o Beira-Mar no histórico estádio Mário Duarte, no jogo decisivo – empolgou as gentes da terra, admite Edgar Soares.

«Em Alvarenga, a maior empresa é o lar de idosos, que emprega 35 pessoas, neste momento, a segunda maior é o clube, que tem sete. Claro que o pessoal ficou surpreso com o sucesso, mas também percebem que o clube funciona como rampa de lançamento de jovens», realça o homem que apesar de já não estar ligado ao Alvarenga é ouvido em todas as decisões importantes.

Missão: lançar jogadores e chegar aos nacionais em três anos

Depois do título da época passada, este ano as coisas não estão a correr tão bem e o Alvarenga anda pelo meio da tabela, mas isso não traz incómodo, garante Marcos Rodrigues.

«Tivemos uma fase de adaptação a um campeonato que é mais equilibrado, mas estamos contentes com o que temos conseguido. O objetivo é, em três anos, chegar aos campeonatos nacionais, mas o que queremos mais é dar visibilidade a jovens jogadores que têm muita qualidade», salienta.

Apesar de não ter um plantel completamente profissional, conforme já foi referido, há jogadores que só vivem para o futebol. E para esses 12 elementos, o clube tem um modelo que tenta ser o mais profissional possível. «Eles têm treinos bi-diários:  de manhã com o treinador, e ao final do dia com o grupo todo», esclarece Marcos.

Perguntamos então, como se consegue convencer jovens jogadores a trocar o Brasil por uma aldeia remota no interior de Portugal e por um clube que não disputa os campeonatos nacionais. A resposta surge sem hesitação.

«O sonho de qualquer jogador brasileiro é chegar à Europa. E eles sabem que é mais fácil serem vistos aqui, mesmo num campeonato de menor visibilidade, do que estando no Brasil, também em equipas pequenas. Além disso, eles vêm com garantias e sabem que vêm para crescer e ajudar um clube pequeno a crescer também.»

Para os ajudar a crescer, há um treinador que, nos tempos de jogador passou por clubes como o Sp. Braga a Académica ou o Boavista: Pedro Costa.

E é o próprio técnico a assumir que este é um projeto diferente. «Claro que queremos ganhar, mas o principal objetivo do Alvarenga é lançar jogadores e dar-lhes uma boa base de formação e adptação ao futebol europeu», assume.

E é por isso que  equipa que lidera tem uma média de idades de cerca de 22 anos, o que, num campeonato competitivo, «às vezes sai caro». «Como tenho alguns jogadores que são profissionais e com quem faço dois treinos por dia, também lhes posso exigir mais. Mas eles são jovens que estão muito comprometidos com isto e têm uma grande capacidade de sacrifício, também porque não é neste nível que querem ficar», descreve.

Deixar uma cidade com 12 milhões de pessoas e perder-se em Alvarenga

O discurso que escutamos do vice-presidente do Alvarenga ecoa, depois, quando encontramos os jogadores a prepararem-se para mais um treino, na gélida noite de Arouca.

Há um ano e três meses em Alvarenga, Milton afirma que nem pensou duas vezes quando lhe apresentaram a possibilidade de atravessar o Oceano Atlântico para seguir o seu sonho. «Quando surgiu a oportunidade de vir, decidi na hora. O que eu queria era poder estar na Europa para depois sair a procurar a minha sorte. Eu não conhecia muito bem o projeto, mas o meu sonho é chegar no topo e jogar com os melhores jogadores, por isso quis vir», sublinha o jovem médio de 22 anos.

Quando Milton nos diz que é natural da cidade de S. Paulo, perguntamos-lhe sobre  o choque de trocar uma cidade com mais habitantes do que Portugal por uma freguesia como Alvarenga. Do outro lado, recebemos um sorriso acompanhado por um coçar de cabeça.

«No começo fiquei meio perdido. É uma realidade muito diferente. Lá, o movimento não pára e aqui é tudo muito, muito sossegado. Mas agora já estou adaptado para continuar na minha luta», assegura.

Como é um dos brasileiros há mais tempo no clube, Milton foi quem recebeu os companheiros que chegaram mais recentemente. É o caso de Bruno Martins, de 20 anos, que também chegou a Alvarenga para perseguir o seu sonho.

«Eu jogava numa equipa pequena lá perto da minha cidade, que é Araras, no estado de S. Paulo. Mas o meu sonho é jogar na Europa e, mesmo sabendo que vinha para uma equipa pequena, quis agarrar essa oportunidade», resume. O mais difícil? «O frio, que não estava acostumado, e a saudade quando bate», admite. «Mas o meu objetivo é ser jogador de futebol, por isso que vou lutar», garante.

Começar a busca pelo sonho logo na Capital do Mundo pode ser um bom prenuncio. Até porque ali, as pessoas tiveram de aprender a lidar com a saudade dos que partiram em busca de uma oportunidade. Agora é a vez de Alvarenga acolher quem também procura a sua.

E aí voltamos a dar a palavra a Edgar Soares, que resume bem esta ideia. «A capital do mundo pode ser onde quisermos. É a terra que trazemos no peito e de onde sentimos saudades e vontade de regressar. Porque podemos perder muitas coisas pelo caminho, mas nunca perdemos as nossas origens.»

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