CAMINHOS DE PORTUGAL é uma rubrica do jornal Maisfutebol que visita passado e presente de determinado clube dos escalões não profissionais. Tantas vezes na sombra, este futebol em estado puro merecerá cada vez mais a nossa atenção. Percorra connosco estes CAMINHOS DE PORTUGAL.

CLUBE DESPORTIVO DE FÁTIMA – I Divisão AF Santarém

Há dois anos o Clube Desportivo de Fátima vivia uma situação desesperada. Os jogadores tinham cinco meses de salários em atraso, alguns «passaram fome», como recorda o capitão Jorge Neves, e foi preciso acionar o Fundo de Garantia Salarial. Um investidor apareceu, fez promessas que mostraram ser vãs, e voltou a desaparecer. Falava-se em falência, previa-se o fim do clube. Dois anos passaram e o cenário mudou. Agora, apesar de o Fátima ter descido aos Distritais, as palavras são estabilidade, subida, objetivos ambiciosos de chegada à I Liga em cinco anos.

O Fátima precisava de uma tábua de salvação e ela surgiu, mas vinda de um lugar imprevisto: Meca. Da cidade mais sagrada do Islão chegou o investimento para o clube do centro espiritual dos católicos em Portugal. Abdulmouti Akaaki, empresário da Arábia Saudita, adquiriu 90 por cento da SAD do Fátima por 225 mil euros.

O Fátima tornou-se num exemplo de diálogo inter-religioso: o investidor e o diretor geral são muçulmanos e o presidente é um padre católico. A convivência? «Perfeitamente normal», explicam ao Maisfutebol. Os segredos? «Respeito» e «inteligência».


(Abdulmouti Akaaki com o padre António Pereira na formalização da compra da SAD)

O presidente, o padre António Pereira, está ligado ao Fátima há 46 anos. «Eu faço parte deste clube há muito tempo - vou e venho, consoante precisam de mim», começa por explicar. Questionado sobre se está a ser fácil lidar com as diferenças religiosas, responde com pragmatismo: «As coisas estão a correr bem, por que não haveriam de correr? Isto é futebol e o desporto também serve para unir as pessoas».

«Eles são extremamente simpáticos connosco, e nós com eles. Estamos a falar de pessoas adultas, com uma visão alargada das coisas», explicou, apontando depois um exemplo. «Há dias, morreu a mulher de um dos nossos diretores e o diretor-geral, mesmo sendo muçulmano, foi ao funeral católico. Foi um gesto bonito».

O diretor-geral é Yasser Ben Hamida. Tunisino, muçulmano, que viveu muitos anos em França, e que esta época de mudou para Fátima para gerir o projeto do clube. Também ele não garante que não sentiu dificuldades de integração por causa da religião. «As pessoas são acolhedoras, quer no clube, quer na cidade», explica.

Vantagens de um presidente padre? «Não nos vai mentir...»

Yasser Ben Hamida esteve no ano passado em Fátima pela primeira vez, altura em que o empresário saudita começou os contatos com o clube. «Antes nem sabia que havia uma cidade chamada Fátima, nem o que significava para os católicos», conta.

«Em casa celebramos o Ramadão e a Páscoa», revela o diretor desportivo, que é casado com uma cristã há oito anos. «O Islão diz que somos livres de escolher a religião. Temos é que saber respeitar», frisou. «Estou habituado a essa diferença, por isso, até há algumas semanas, nem tinha pensado muito nessa questão das religiões diferentes dentro do clube, mas agora compreendo que seja importante e simbólico essa mensagem de paz».

E a escolha do Fátima para investir até nem foi alheia à religião. «O investidor queria um clube para um projeto que permitisse começar do zero e ir subindo. Além da questão geográfica, de Fátima ser no centro de Portugal, Abdulmouti Akaaki gostou do facto de o presidente ser padre, acredita que ele não vai mentir, esconder-nos coisas sobre a situação do clube. E acho que o padre António Pereira também confia mais nele por ser de Meca», conta Yasser Ben Hamida.


( Yasser Ben Hamida, Abdulmouti Akaaki e o capitão Jorge Neves)

No plantel do Fátima há também dois jogadores sauditas e mais dois à experiência. « Às vezes chegamos ao balneário e eles estão ajoelhados a rezar e achamos engraçado. Eles tomam banho com roupa interior, nos jantares não comem carne de porco, nem bebem álcool. Nós respeitamos e pronto», conta o capitão Jorge Neves. «Eu já tinha jogado em Chipre e tinha companheiros de outras culturas, de outras religiões, sei como é».

Além dos quatro muçulmanos no clube «há católicos praticantes, outros não. Alguns até ganham a vida a vender artigos religiosos», explica o jogador.

«Às vezes os adeptos adversários até nos mandam bocas a dizer: ‘É só santinhos’. Mas a religião não é um assunto muito presente».

E os adeptos, como vêem esta variedade religiosa? «Os adeptos querem é vitórias... As pessoas estão entusiasmadas, há uma onda nova, não são aquelas notícias más da insolvência», frisa o presidente.

O capitão admite: «Eles são muçulmanos, no início as pessoas ficam assim um bocado... sobretudo agora com estes atentados, mas já deu para ver que são boa gente».