CAMINHOS DE PORTUGAL é uma rubrica do Maisfutebol que visita passado e presente de clubes dos escalões não profissionais. Tantas vezes na sombra, este futebol em estado puro merecerá cada vez mais a nossa atenção.

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GRUPO DESPORTIVO DE BRAGANÇA, AF BRAGANÇA 

O futebol pode ser um lugar extraordinário. A começar por Bragança e, em particular, pelo seu Grupo Desportivo de Bragança. 76 anos de uma longa história, batalhas inesquecíveis nos relvados nacionais, figuras importantes com o emblema brigantino no currículo.

Mais de 40 anos depois, a equipa cai em 2018 nos distritais. Dias difíceis, de mágoa e dúvida, mas dias já virados de cabeça para baixo.

No próximo domingo, 5 de maio, o Bragança recebe o Minas de Argozelo e precisa apenas de um ponto para voltar ao habitat natural: as ligas nacionais. Não há mal que sempre dure.

Na baliza, agora e sempre, o eterno Ximena. 26 temporadas no Bragança, mais de 600 jogos, estórias atrás de estórias, lágrimas e personagens famosas nos balneários.

É pela mão de Ximena, sempre de luva calçada, que o Maisfutebol percorre este Caminhos de Portugal no Municipal de Bragança.  

«Precisamos de um ponto. O nosso patamar aceitável é o Campeonato de Portugal mas, se unirmos a população ao clube, então podemos pensar na II Liga», explica Ximena, lembrando que nesta altura vão «500/600 pessoas aos nossos jogos em casa».

«Tive muita sorte. No meu primeiro ano de sénior, tinha eu 19 anos, apanhámos o FC Porto nos quartos-de-final da Taça de Portugal [2000/01]. Vi mais de dez mil pessoas aqui no estádio, não cabia mais ninguém. A transmissão televisiva até esteve em risco, tiveram de colocar câmaras de filmar em cima de caixotes. Fui convocado e vivi uma das noites mais marcantes da minha vida.»

O Bragança faz, de resto, a vida negra a esse FC Porto de Fernando Santos. Tem de ser Deco, lançado na segunda parte, a desequilibrar e a oferecer o 1-2 final a Clayton.

«Nessa época eliminámos Rio Ave, Varzim e apanhámos o FC Porto. Ao intervalo estava tudo empatado. Nunca mais me esquecerei o cordão humano de três quilómetros entre o nosso hotel e o estádio. O Bragança tem de voltar a esses tempos.»

VÍDEO: a visita dura do FC Porto a Bragança em 2001 (imagens RTP)
 

Não se fala de um emblema qualquer. O Bragança tem também dois jogos no palmarés contra o Benfica [0-2 em março de 1980 e 6-0 na Luz em fevereiro de 1982] e mais dois contra o Sporting [1-5 em dezembro de 1983 e 3-0 em Alvalade em dezembro de 1985]. Sempre para a Taça de Portugal.

Ao gigante transmontano falta, por ora, uma presença na I e II Ligas. Nada que o discurso de Ximena não possa corrigir. A conversa é ótima. «Vivi de tudo aqui. Em 2007, por exemplo, fomos eliminar a Naval à Figueira da Foz, quando eles estavam no quarto lugar na primeira divisão. E depois recebemos em Bragança o Belenenses do Jorge Jesus.»

E então? «Seis mil pessoas, grande exibição nossa, perdemos 1-2. Mais recentemente estivemos em duas Fases de Subida do Campeonato de Portugal, sempre muito perto da II Liga. Até, como lhe disse, às lágrimas na época passada. Nunca pensei jogar pelo Bragança nos distritais.»

O GD Bragança 2018/19 está a um ponto de voltar aos Nacionais

«O Pizzi vem cá e vai connosco ao café sem problemas, é um de nós»

Na temporada 2006/07, o plantel do Grupo Desportivo de Bragança tem um nome familiar: Pizzi. 17 anos apenas, ainda idade de júnior. Ximena recorda o antigo colega, sobretudo pela «frieza em frente à baliza».

«Ele já treinava connosco quando era juvenil. Não era um fora de série, não posso dizer isso, mas pensava o jogo de forma diferente. Era muito forte na receção e no primeiro toque e em frente à baliza tinha uma frieza impressionante. Nunca vi nada assim por cá.»

Pizzi troca Bragança por Braga no fim dessa época, mas o coração nunca larga a urbe brigantina. «Continua o mesmo miúdo tranquilo, aparentemente envergonhado, mas que gosta de umas brincadeiras. Vem cá nas férias e vai connosco ao café sem problemas. Só tenho pena que jogue no Benfica (risos). O meu clube é o Bragança e simpatizo com o FC Porto.»

O Bragança, diz Ximena, precisa de fazer «mais Pizzis» e de melhorar dois aspetos: a tal proximidade à população e a melhoria nas condições para as camadas jovens.

«A formação é fundamental. Eu até já comecei um bocado tarde, por volta dos 13 anos, mas aos 19 tive um pré-acordo assinado com o Benfica. Mas isso coincidiu com a chegada do Luís Filipe Vieira, que acabou com a equipa B. Nunca me iludi, nunca dei um passo maior do que as pernas e fui ficando. Convites nunca me faltaram, mas nada que me fizesse largar a minha vida cá.»

«Uma estátua é demasiado, mas gostava que dessem o meu nome a um troféu»

Ximena tem o 12º ano de escolaridade e o curso de instrutor de condução. Há sete anos, a vida profissional é ajustada às necessidades familiares e desportivas. O guarda-redes larga as aulas de condução – e as horas impróprias – para se empregar no escritório de uma oficina de reparação de automóveis.

A esse emprego, o eterno guardião brigantino junta uma loja de pronto a vestir chamada «Xicago». Cada sílaba representa uma parte dos nomes da esposa, dos filhos e do próprio Ximena.

É a pensar na família, aliás, que Ximena fará o último jogo no Municipal de Bragança este domingo.
 

Ximena e o Bragança, uma relação com décadas


«Não posso jurar, mas há 80 por cento de possibilidades de me retirar no final da época. Tinha anunciado o adeus na época passada, mas descemos de divisão e não podia deixar o clube assim. Já sei que a direção me vai pressionar para continuar, mas disse-lhes que têm é de negociar com a minha mulher.»

Ximena ri-se, mas as palavras fazem todo o sentido. «O clube tem 76 anos e o meu pai tem 76 anos também. Sinto que dei muito mais ao clube do que ao meu pai e tenho de corrigir isso.»

O que falta, então, para Ximena parar?

«O futebol é um vício maravilhoso. Não é fácil deixar isto. Gostava de acabar com a subida – e de dedica-la ao meu colega Nelson, guarda-redes, que se lesionou no joelho logo no segundo treino - e gostava de ter, no futuro, um troféu com o meu nome. Uma estátua seria demasiado. Queria ainda escrever um livro de memórias, há tanto para contar.»

«Urinei num colega e ele foi para o Benfica; agora querem ser urinados por mim»

No livro de Ximena, que um dia verá a luz do dia, há duas estórias que têm de entrar. A primeira fala de uma saída à noite, de urina e de uma transferência para o Benfica.

«Fizemos um campeonato ótimo e fomos festejar a subida a um bar. No fim da noite, fui urinar atrás de um caixote, já cá fora. Um colega meu começou a dizer que vinha a Polícia a caminho e comecei a rir-me. Com a confusão molhei o meu colega tudo. A verdade é que poucos dias depois ele foi transferido para o Benfica. Chama-se Serginho e joga agora no Sintrense.»

Conclusão: a partir daí, todos quiseram passar a ser… abençoados com uma transferência para a Luz. Com a urina de Ximena. «Passou a ser uma praxe. Passaram a pedir-me para lhes fazer isso, todos a sonharem com uma ida para o Benfica.»

A segunda passa-se em Braga, no final de um jogo de juniores.

«O Campeonato Nacional era dificílimo, por isso a nossa estratégia era defensiva. Em Braga, nesse dia, o treinador diz-nos que teve um sonho com a tática e que iríamos jogar só com três defesas, à holandesa. Perdemos 11-0, a maior goleada da minha vida. No balneário estava tudo em choque, parecia um funeral, até eu me virar para o mister e dizer-lhe assim: ò mister, vá sonhar ao c……!»

O futebol e o Grupo Desportivo de Bragança precisam do eterno Ximena, um guarda-redes de qualidade e um comunicador fantástico. Fica à consideração familiar.  

[artigo originalmente publicado às 23h45, 01-05-2019]

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