No campeonato dos gestos e da generosidade, no futebol, não há divisões, mas há escalões.  Numa crise nunca antes vista, há jogadores e dirigentes que continuam a viver muito bem e aqueles que lutam para sobreviver. E são esses que merecem toda a atenção da iniciativa «Do Futebol para a Vida», criada por um pequeno grupo de jogadores do Campeonato de Portugal, há uma semana, e que levantou uma onda de solidariedade quase inédita no universo futebolístico. O cancelamento da época não profissional, imposto pela Federação, veio agravar as extremas dificuldades de jogadores e dirigentes de vários clubes, que agora precisam de ajuda como, literalmente, de pão para a boca. Estão à beira da miséria.

«Tudo começou num dia em que perguntei ao meu compadre e colega de profissão, o Ibra: “Olha, nós, apesar de estarmos parados, ainda estamos bem, com as nossas famílias, mas os jogadores estrangeiros também estarão cómodos, com comida?”. Ele ficou a pensar no que lhe disse, nem dormiu nessa noite, e no dia a seguir decidimos criar o grupo», começa por explicar Hugo Machado, jogador do Loures, ao Maisfutebol.

Daniel Almeida, David Dinamite, Fábio Silva, Ibraim Cassamá, Paulo Silva (Paulinho) e Sandro Silva, jogadores de vários clubes do Campeonato de Portugal, são os outros rostos de uma causa que visa angariar alimentos e donativos que chegam de todo o lado. Rapidamente, o ‘plantel’ começou a conhecer novas caras, algumas bem conhecidas. Jogadores de várias divisões, treinadores, presidentes, empresários, árbitros e até chefes de claques.

Paulinho e Hugo Machado

Por livre iniciativa, Bruno Fernandes contactou Rui Fonte (Sp. Braga), que também já estava por dentro do processo, e decidiu juntar-se ao movimento. O médio do Manchester United está agora, a partir da zona do Porto, a ajudar no que for preciso.

Chiquinho, médio do Benfica, Silas, ex-treinador do Sporting, e Wilson Eduardo, também do Sp. Braga, também já fizeram a sua parte para ajudar. Tiago Esgaio, do Belenenses, já foi até ao supermercado comprar alimentos para depois os distribuir.

Tiago Esgaio (Belenenses) com André Ceitil (Vilafranquense)

Carlos Vinícius, avançado do Benfica, é outro que também «já fez uma considerável contribuição». «Ele jogou comigo no Real e sabe o que estes jogadores estão a passar», diz Paulinho, um dos organizadores da iniciativa.

Foi precisamente o lateral do Real Sport Clube que abriu uma conta, em nome próprio, na qual recebe os donativos. São milhares e milhares de euros que entram à medida que a iniciativa vai ganhando notoriedade. O bolo cresce de hora a hora.

«Estamos muito contentes pelo que está a acontecer, superou as expectativas. É incrível ver a forma como os jogadores carenciados ficam com a lágrima ao canto do olho pelo facto de os ajudarmos», conta Sandro Silva, um dos vários jogadores que, nos últimos dias, têm brilhado fora dos relvados. Levantam-se bem cedo, recolhem os donativos - que vão desde bens alimentares a fraldas para bebés -, juntam-nos num armazém improvisado e daí partem para vários pontos do país, para os distribuírem para jogadores e respetivas famílias, que precisam que alguém lhes dê a mão.

Já foi mesmo criado um site para facilitar a ajuda, assim como um grupo de whatsapp que serve para fazer o ponto de situação. Por lá “chovem" os recibos dos donativos, fotografias com carrinhos de compras, etc. A maioria dos jogadores que recebe ajuda não quer dar a cara por vergonha, ou medo das represálias.

«Os casos de maior gravidade são de jogadores estrangeiros que foram abandonados pelos clubes e pelos empresários. Alguns desses atletas têm bebés para criar», diz ao Maisfutebol Fernando Madureira, líder da claque “Super Dragões”, que está gerir o movimento na zona Norte do país e não só.

«Já resolvi casos na Madeira e em Seia. Esta é uma iniciativa sem camisolas, por isso quero agradecer aos jogadores do Benfica que já fizeram os seus donativos», acrescenta. Entre jogadores, famílias, dirigentes e outras figuras ligadas ao futebol, como a cozinheira do Fátima, este movimento já serviu para dar de comer a quase uma centena de pessoas.

O que começou por ser um grupo ‘familiar’ transformou-se numa autêntica Liga nacional de solidariedade. O plantel do Oriental, por exemplo, doou o dinheiro angariado ao longo da época a esta iniciativa. Contribuições que já serviram para pagar rendas de casas, nos últimos dias, e que vão para jogadores de clubes da mesma divisão, mas que passam por extremas dificuldades. Há salários em atraso em muitos emblemas e uma série de promessas vazias, de dirigentes e empresários, que não foram cumpridas. «A pandemia da covid-19 só veio agravar esse cenário de miséria, que já existe há muitos anos e que vai continuar», lamenta Sandro Silva, defesa do Real.