A infância, pelo menos a de um jogador de fim-de-semana, acaba quando somos capazes de resistir a uma bola. Ou a um campo vazio. 

No meu caso, não sei o que veio primeiro, se o fascínio pelo esférico, se pelo terreno de jogo. Quando ia no carro com os meus pais e passávamos por uma placa a dizer «Estádio», pedia-lhes que seguissem as indicações e só descansava quando os convencia a parar. Não raras vezes obrigava-os a bater à porta ou ao portão, a gritar «Ó da casa», ou o «Ó do campo», com a desculpa de que o filho estava a fazer um trabalho da escola e se podíamos dar uma vista de olhos.

A esta distância tudo isto causa um certo embaraçoso, a verdade é que me sentia em casa, mesmo que fosse o estádio de um clube que não o meu e uma terra com a qual não tinha qualquer afinidade. Subia e descia as bancadas à procura do melhor lugar, pisava o relvado, se me deixassem, tirava e dava notas num caderno mental que ainda hoje me acompanha, apesar de cada vez mais rasurado. Acreditava que aquele hectare era território sagrado, o coração de qualquer terra, o local onde todas as pessoas e todas as ruas iam desaguar, mais importante do que o mercado local, a câmara municipal, o tribunal ou o castelo.

A idade fez questão de colocar tudo em perspectiva e levou-me o fascínio pelos estádios, mas não pelo campo. Sobretudo por campos abandonados. Guardo religiosamente uma pasta com imagens de campos de futebol abandonados tiradas durante as muitas viagens que tive a sorte de fazer pelo mundo. A maioria delas foram, ainda assim, feitas em Portugal. Nenhum país no planeta deve ter tantos campos abandonados como Portugal — alguém que faça esse levantamento, por favor! — ilhas de terra e de cimento rodeadas de ervas, mato e de memórias por todo o lado. Há muitos nas grandes cidades, em associações e colectividades históricas, mas parecem florescer quando nos afastamos dos centros urbanos e se entra naquele território a que apelidamos de «Interior» ou de «Paisagem».

Tenho fotos incríveis. Já sugeri, inclusive, a alguns colegas fotógrafos e académicos que dedicassem a este assunto, mas ainda nenhum agarrou a ideia, o que é pena. Tal como os estádios são uma demonstração de força e de poder, estes campos são uma radiografia do país que fomos e que somos, um certificado das nossas idiossincrasias e assimetrias. Do envelhecimento e da desertificação. Pergunto-me constantemente como aldeias que não têm ninguém por quem dobrar os sinos foram capazes de construir um campo de futebol de 11 ou mesmo de 5?! Durante quanto tempo ali se jogou? Fizeram-se torneios? Havia gente a assistir? Quantos jogadores de fim-de-semana ali terão nascido?

Há alguns meses, aquando de uma ida a casa dos meus pais, agarrei na bicicleta de montanha e na câmara fotográfica e fui à procura de um desses campos, construído no início dos anos 80. Ficava na zona mais verde e íngreme da aldeia, onde viviam os meus avós maternos e a minha mãe tinha o pronto-a-vestir. De vez em quando, a parte de cima desafiava a parte de baixo e, depois da missa de domingo, lá iam eles, os mais velhos, floresta adentro — à data pensava que era uma floresta, tão pequeno que era — uma espécie de oásis que, mais de três décadas depois, não consegui localizar, transformada que estava em paisagem.

Foi precisamente a pensar na minha geração, na geração dos trinta e muitos, quarentas, que muitos destes campos foram construídos. Já que fomos incapazes enchê-los de crianças, que sejamos, pelo menos capazes de resgatá-los do esquecimento. Como? Não faço ideia. Fazendo crónicas, tirando fotos, andando com uma bola no carro, qualquer coisa, antes que a natureza engula, de uma vez por todas, o que resta da nossa infância.

«Jogador de fim-de-semana» é uma crónica literária de João Ferreira Oliveira, que escreve todas as segundas-feiras no Maisfutebol. O autor opta pelo Acordo Ortográfico antigo.