«A festa aqui é uma alegria, uma coisa muito especial. Uma comunhão enorme entre jogadores e adeptos, com música, dança. É uma coisa que vale a pena viver.»

A festa é de Cabo Verde, que foi a primeira seleção de África a garantir a presença na fase final da CAN 2015, horas antes da Argélia de Slimani e Brahimi. A descrição que nos transporta até à noite de quarta-feira na Cidade da Praia é de Rui Águas, o treinador português que pegou na seleção em Agosto, para dois meses e quatro jogos depois ter atingido o primeiro objetivo.

«Já tinha sido esta festa quando ganhámos à Zâmbia. É um ambiente especial»,  prossegue Rui Águas, a recordar a vitória mais significativa da equipa, frente à seleção que venceu a CAN em 2012. Foi à segunda jornada. A estreia tinha sido no Niger, também com uma vitória. Seguiu-se uma derrota na visita a Moçambique, no fim de semana passado, mas foi apenas um percalço. Esta quarta-feira, na Praia, um golo de Heldon garantiu mais três pontos e o apuramento precoce.

Cabo Verde dançou até à CAN. O arquipélago que, somadas as 10 ilhas, não tem sequer meio milhão de habitantes, volta a dar que falar. Com música em fundo, é assim mesmo. «Os jogadores aqui nunca prescindem de música. No autocarro, em todo o lado», sorri Rui Águas, ele que tem ligações familiares fortes a Cabo Verde: «Às vezes a gente tem que pedir para desligarem um bocadinho.»

No dia seguinte à vitória que garantiu o apuramento Rui Águas é, diz, um treinador «aliviado»: «Agora estou a aproveitar um bocado estes momentos, que têm mesmo de ser aproveitados. Foi um stress grande, havia uma expectativa enorme. O objetivo primeiro foi alcançado, e cedo, o que nos permite fazer uma gestão mais tranquila.»

Quando pegou na equipa Rui Águas não imaginava apurar-se à quarta jornada: «Não pensei nisso, não. Mas a partir do momento em que ganhámos os dois primeiros jogos tínhamos esperança. O último jogo, caso precisássemos, era para nós problemático: a visita à Zâmbia, que é o adversário mais forte do grupo.»

É mais um momento feliz para Cabo Verde, que apenas há dois anos conseguiu a sua primeira presença na CAN. Os «Tubarões Azuis» chegaram logo aos quartos de final, então sob o comando de Lúcio Antunes. Não ficaram por aí. Estiveram à porta do play-off para o Mundial 2014, mas acabaram por ficar de fora numa decisão de secretaria, por utilização irregular de um jogador, Fernando Varela.

No verão, depois da saída de Lúcio Antunes, que rumou a Angola para treinar o Progresso de Sambizanga, e de um período de transição, Cabo Verde escolheu Rui Águas. A transição foi tranquila e a equipa voltou a superar expectativas.

Esta seleção de Cabo Verde é resultado da conjugação de bom trabalho que vem de trás e de uma seleção de bons jogadores, com experiência competitiva a alto nível, diz o atual selecionador. «Este sucesso de Cabo Verde explica-se pelo trabalho que vem sendo feito pela Federação e pelas pessoas que trabalharam com a equipa nos últimos anos», afirma, referindo antes de mais João de Deus, agora treinador do Sporting B, que foi selecionador de Cabo Verde entre 2008 e 2010 e orientou o Gil Vicente na época passada e no início da atual temporada.

«O João de Deus iniciou aqui um bom programa, continuado também pelo então seu adjunto, o Lúcio Antunes, que foi o meu antecessor», observa, revelando que contou com a colaboração de ambos quando iniciou o seu próprio trabalho à frente da equipa: «São pessoas com quem tive oportunidade de conversar, que me passaram muita informação.»

«É um princípio importante quando chegamos a algum lado, documentar-se o mais possível em relação às realidades que se vai encontrar. A disponibilidade dos colegas é muito importante», reforça Rui Águas.

Quanto ao resto, a adaptação do antigo avançado português a Cabo Verde foi fácil. Rui Águas tem ligações pessoais profundas e fortes ao país. «O sítio, as pessoas, a sensibilidade, isso eu já conhecia. Tenho família cá, a minha mulher é caboverdiana.»

O contributo dos antecessores é importante no que diz respeito ao futebol, claro: «É mais em relação aos jogadores, como são fora de campo, todo o tipo de informação que é útil.»

Depois, há uma geração forte de jogadores. «Esta é uma seleção com qualidade, uma geração que teve também a possibilidade de se fortalecer jogando em campeonatos competitivos», prossegue Rui Águas.

Jogam em muitos campeonatos diferentes, de Portugal ao México (onde está Djaniny). O que levanta por outro lado, nota Rui Águas, desafios diferentes ao treinador. «Como as proveniências são várias, também obriga a alguma ginástica para integrar as diferentes filosofias. Tenho jogadores de Portugal, Espanha, França, Bulgária, Roménia, México, Rep. Checa.»

«Evidentemente» mais fácil se Heldon jogasse no Sporting

Ser treinador é gerir tudo isto. Gerir, nomeadamente, Heldon. A grande referência da seleção, o jogador do Sporting entrou para marcar o golo decisivo frente a Moçambique. Sem oportunidades em Alvalade, Rui Águas tem optar por deixar o extremo no banco de início, para o lançar mais tarde.

«É uma questão simples. O Heldon aqui é um jogador muito popular. Foi muito importante neste último jogo. Mas, no meu entender, aquilo que não tem tido no Sporting, oportunidade de jogar, retira-lhe capacidade e ritmo que lhe permitam jogar de início», explica Rui Águas.

«Além disso Cabo Verde tem talvez nas alas o setor mais rico deste plantel, bons jogadores que têm ritmo de competição grande», observa: «Para mim seria errado utilizar o Heldon no início, acho que não teria capacidade para conseguir resolver. Com todo o talento e imprevisibilidade que tem, é um jogador especial, realmente um jogador diferente. Mal grado a falta de ritmo, a atitude e a frescura que apresenta têm-me permitido contar com ele e tem sido muito útil, numa fase em que os adversários também estão mais desgastados.»

Dito isto, Rui Águas admite que era «evidentemente» mais fácil gerir a situação se Heldon jogasse mais no Sporting. «É evidente que é difícil . Quando se fala em ritmo de jogo não se fala por acaso. É difícil», observa, notando como Heldon se viu numa encruzilhada em Alvalade no defeso: «Ele foi apanhado um bocado no meio de uma transferência de um concorrente que acabou por não acontecer, depois veio o Nani, depois uma possibilidade de sair que não se concretizou.» Heldon

Voltando à seleção, Cabo Verde pode agora concentrar-se na preparação da CAN. Sem definir objetivos, quando a referência é a chegada aos quartos de final de há dois anos. «A meta definida era repetir a presença. Já se sabe, é como a seleção portuguesa, não faz sentido definir grandes objetivos, não se pode estar já a programar esse tipo de coisas. A questão que se coloca sempre é a passagem da fase de grupos», diz Rui Águas.

A CAN 2015, marcada para Janeiro e Fevereiro em Marrocos, aproxima-se com a sombra da propagação do vírus do Ébola na África Ocidental. O país organizador já pediu um adiamento, a CAF deverá analisar o assunto nos próximos dias. Na tranquilidade de Cabo Verde, longe dos locais mais afetados pela doença, Rui Águas fica à espera para ver.

«Todos os dias vamos ouvindo falar do crescimento da doença, não sei», observa: «Faltam alguns meses, esperamos que tudo se resolva.»