Durante mais de 20 anos, Carlos Kaiser Raposo enganou clubes, iludiu adeptos e simulou lesões. Forjou uma capacidade goleadora inexistente e criou currículos imaginários. Tornou-se no maior farsante do futebol. Chamam-lhe Forrest Gump, pela incapacidade de se manter num lugar durante mais de três meses. A veia de burlão aproxima-o mais, porém, de Frank Abagnale Jr. ou do portuguesíssimo Alves dos Reis, dois dos grandes impostores da história.

Bem falante, senhor de uma inteligência assinalável, Kaiser manteve tudo em segredo até há poucas semanas. Agora com 48 anos decidiu contar tudo. «Uma televisão brasileira apanhou alguns amigos meus e eu não tive como negar. É tudo verdade. Estive em mais de 20 clubes e nunca fiz um jogo completo. Golos ? Não, jamais», assume ao Maisfutebol.

O argumento é digno da fervilhante improbabilidade tecida por Quentin Tarantino, por exemplo. O que temos aqui é um anti-herói, «traumatizado por uma infância indecorosa» e uma inflexível imposição familiar.

«Fui vítima da minha mãe. Obrigou-me a ser jogador de futebol, quando eu sonhava apenas dar aulas de Educação Física. Fiz de tudo para não treinar ou jogar. Menti, enganei, ludibriei, mas também ajudei muita gente.»

Botafogo, Flamengo, Puebla (México), Bangu, Ajaccio (França), Fluminense, Vasco da Gama, América, Independiente (Argentina), El Paso (EUA) e outros diluídos no tempo. Todos caíram no ardil habilmente engendrado por Carlos Raposo.

Bem-vindos às aventuras do falso Kaiser.

Ao soco na bancada, só para não ter de jogar

O relato minucioso evoca dúvidas, naturalmente. Como é que um executante de parco talento e vontade nula arranjou contrato em alguns dos maiores emblemas do Brasil e até na Europa jogou ?

«Nas décadas de 80 e 90 ninguém sonhava ainda com a internet. A informação era quase nula. Eu era bem relacionado, tinha grandes amigos no mundo do futebol e da comunicação social. Eles pintavam um quadro irreal e eu aproveitava. Assinava o acordo e depois levava o esquema ao máximo do absurdo.»

Alergia às bolas, lesões combinadas, telemóveis falsos

Absurdo. Aí está uma definição perfeita ao percurso embusteiro de Carlos Kaiser. Comunicador nato, recorda alguns dos seus feitos mais gloriosos. «No Bangu eu caprichei. Tinha passado algumas semanas a arranjar lesões, até ao dia em que o presidente me fez um ultimato : ou jogas, ou vais embora. Fiquei no banco, mas a equipa estava a perder e o treinador mandou-me aquecer.»

Carlos era avançado. Supostamente, claro. «Comecei a ver os adeptos a insultar os meus colegas, o ambiente a ficar pesado e pensei é agora ou nunca. Subi à vedação, saltei para a bancada e comecei à porrada com os torcedores. Consegui não jogar e ainda fui considerado um herói pelos meus colegas.»

«Queria ser jogador, sem a chatice de treinar e jogar»

Carlos Kaiser não bebia, não fumava, não consumia drogas. O seu único vício eram as mulheres e as saídas à noite. Valtinho, ex-jogador do Sp. Braga e do Sporting, ajuda-nos a perceber melhor a personagem.

«O Kaiser? Que figuraça. Joguei com ele no América. Certo dia eu fui com o Romário ao palácio do Governador e ele pediu para vir também. Era e é um óptimo rapaz e por isso aceitei. No final da audiência tirámos uma fotografia e a partir daí ele andava sempre com a imagem na carteira. Mostrava-a às meninas, dizia que era amigo do Romário e que também era jogador. E não é que o cara se safava bem ?»

«Aproveitei-me dos clubes, da mesma forma que os clubes se aproveitam de muitos jogadores», diz Carlos. «O maior prejudicado fui eu mesmo. Podia estar rico e não estou. Queria ter a vida de jogador de futebol, mas sem a chatice de treinar e jogar.»