12 de junho de 2000: Portugal-Inglaterra, 3-2

Naquela revista lia-se «Ambição». Gostei e comprei-a. Trazia o Figo na capa, com o braço direito erguido e o indicador em riste. Mostrava que era o número um. Queria ser o primeiro.

A caminho de casa fui folheando e lembro-me que havia lá alguém a explicar o título que estava na capa. Queria convencer-me, por palavras dele, que Portugal poderia ser campeão da Europa. Naquela altura, eu nem sabia que as duas coisas podiam vir na mesma frase.

Sentei-me em frente da televisão meio nervoso. Não estava habituado a isto das fases finais. Ainda parecia tudo muito novo. Lembro-me que Portugal entrou em campo com um trio de ataque que era o reflexo do que é hoje a sociedade portuguesa, onde em cada três pessoas parece haver um que está bem na vida, outro que é jovem e procura um rumo e um desempregado. Figo, Nuno Gomes e João Pinto, pelos nomes.

Bola ao centro, apito e dispara o coração. Mãos na boca, unhas entre os dentes e uma palavra na mente: «Ambição». Aquilo tinha invadido o meu íntimo.

Três minutos e golo. Assim, a sangue frio. Mais quinze e vai outro. Portugal, 0. Inglaterra, 2.

Ambição? Ambição? Vergonha! Como é possível que, em pleno ano 2000, sem provas, sem factos, quase sem história, se queira empurrar Portugal para a glória? Como é possível iludir quem apalpa terreno e vai tomando por verdades opiniões de especialistas? Ambição? Umas férias bem pagas na Holanda, três joguinhos, uns chutos na bola e continuamos felizes à beira mar. Ambição? Ambição é... GOOOOOOLOOOOOOO!!!!!

Ambição é golo! Faz todo o sentido. Ambição é querer fazer do jogo o que ele sempre foi: uma disputa entre iguais, onde o dinheiro não entra, onde as camisolas pesam o mesmo e onde o talento decide. Ambição é não ter medo de dizer que se tem o melhor do mundo a liderar um naipe de jogadores como nunca houve. Ambição é ver o Figo fuzilar a baliza de Inglaterra enquanto o David Seaman fica a meio caminho de imitar a rapariga do «Exorcista». Ambição é golo e nada mais.

Aquele míssil do Figo fez aquela revista, de repente, ter toda a lógica. Ambição, pois claro. Era hora de acreditar. Antes do intervalo, João Pinto, tantas vezes acusado de mergulhar, mergulhou para a glória no mais belo golo de cabeça que alguma vez vi. Tudo empatado.

A revista continuava ali pousada. «Ambição», escrito a negro. Não tinha aumentado de tamanho mas era cada vez mais nítido aos meus olhos. O indicador ao alto do Figo, o farol das minhas ilusões. E de mais dez milhões, imaginava. Todos a empurrar. Portugal ia assumir-se.

Fazia sentido, aliás, que fosse contra Inglaterra. Se tudo começou, reza a lenda, com D. Afonso Henriques a bater na mãe, a glória no relvado tinha de vir com uma sova nos pais do futebol. Dito e feito. Passe a rasgar e pontapé do Nuno Gomes para a baliza. Três.

A partir dali todos sabem a história. Portugal falhou a final, mas não mais falhou uma fase final. Afirmou-se. Teve ambição de querer mais e não teve vergonha de o assumir. Aquela noite em Eindhoven foi o ponto de partida do futebol português.

Eusébio, magriços, patrícios, infantes: felizes acidentes de percurso. O caminho a sério começou ali. No que toca a futebol, Eindhoven é Guimarães. Ali nasceu Portugal.

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