A rotina não mudava muito em qualquer dia de verão. Despertar ainda antes de a emissão abrir para não perder um único desenho animado, almoçar, jogar à bola e acabar a tarde no tanque do Rodrigo.

O tanque do Rodrigo era a nossa piscina. A piscina possível numa altura em que as piscinas a sério ficavam a quilómetros de mais para quem usava os pés ou os pedais para se mover.

Aquilo chegava-nos bem. Quatro paredes ao alto, água pelo peito, algum lodo que acumulava por cima mas saía à primeira bomba e, uma vez, um saco de bacalhau a demolhar, que tirámos, guardámos e continuámos como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Para mim só havia um problema: a minha mãe não achava lá grande piada e estava proibido. Apanhou-me duas vezes. Ainda é capaz de dizer que eu não a consigo enganar e foram as duas únicas vezes que lá fui. Nunca corrigi. Deixo-a ser feliz pois foi para isso que ela me pôs no mundo.

Mas chegou a hora de assumir, pois acho que já não vou ficar de castigo. A verdade é que não fui só duas vezes. Terei ido, pensando assim por alto, umas cem.

Ir para o tanque do Rodrigo nas tardes de verão era o risco saudável que eu corria naquela altura. Saudável porque me sabia bem. Risco porque era, de facto, arriscado. Mas o que não era arriscado nas brincadeiras dos 90’s?

Era, enfim, um risco saudável. Um risco a sério seria, por exemplo, andar em contramão numa autoestrada. Depois, arranjo espaço ainda para uma terceira categoria. O risco «minha-nossa-senhora-o-que-é-que-este-gajo-foi-fazer-não-acredito-nisto».

Aqui insiro, logicamente, o penalty à Panenka de Hélder Postiga contra a Inglaterra no Euro 2004.

Sou um defensor das qualidades de Hélder Postiga. Sim, eles existem. Na minha coleção de camisolas de futebol até há espaço para uma do avançado da Lazio e nem sequer é daquelas que dizem «Eu vi o Postiga marcar um golo». É uma a sério.

Aquela Panenka, que ainda hoje acho que é a pior que já vi entre as que correram bem, convenceu-me. Fez-me lembrar o Coronel Smith, do «A-Team», o homem da velha máxima: «I don’t play by the rules!». Admirava estes tipos porque, no fundo, eram tudo o que eu não era.

Ver Postiga, com 60 mil na Luz expectantes, com um país em suspenso e com o mundo a olhar, arriscar tanto, tanto que a bola quase nem levantou, tirou as minhas dúvidas: estava ali um tipo especial.

Postiga, arrisco dizer, não será ídolo de ninguém. Vai passar toda a carreira a jogar numa posição que não é bem a sua, porque alguém inventou que não faz falta um homem atrás do avançado, onde, defendo, ele deveria jogar.

Nunca marcará vinte golos por época, nunca venderá muitas camisolas e, aos 31 anos, já não terá muitos momentos de glória pela frente.

Mas, para mim, será sempre o homem que arriscou. O tipo que me fez dizer: «Minha nossa senhora, o que é que este gajo foi fazer? Não acredito nisto». Que fez o meu coração (e o de milhões de portugueses) parar por dois segundos enquanto aquela bola, meio tosca, entrava na baliza. O homem que correu riscos.

Em suma, é um tipo às direitas, daqueles que eu gosto. Se um dia conversar com ele sou capaz de o convidar para um mergulho no tanque do Rodrigo.

Não digam é à minha mãe, por favor.



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