28 de março de 2006: Benfica-Barcelona, 0-0

Eu nem sou de intrigas, mas, cá entre nós, confesso-vos que um dia pensei que Moretto era filho do diabo.

Não quero com isto insultar o antigo guarda-redes do Benfica. Longe de mim. Afinal ele é rapaz para quase dois metros e eu, coitado, só de passar do Bilhete de Identidade para o Cartão do Cidadão, ainda perdi mais cinco centímetros. Ninguém me explicou porquê mas imagino que seja da crise.

Aquela associação remonta à minha infância e a uma das frases que os mais velhos dizem e os mais novos fazem de conta que ouvem. «Quem dá e depois tira é filho do diabo», avisavam-me, com o indicador em riste, sempre que me arrependia da minha súbita generosidade. E eu, com medo de ficar um pele vermelha chico-esperto de barbicha e corninhos, obedecia, claro.

Anos mais tarde, vi o Benfica-Barcelona e percebi que era tudo uma grande mentira. Uma lenga-lenga que atravessa gerações para assustar os mais novos e ensinar-lhes os bons valores da vida. Uma máxima popular com alguma utilidade. Olhem que não é fácil encontrá-las. Sim, esta boca foi para ti oh «não passes por cima de mim, se não não cresço».

Se fosse verdade, Moretto tinha deixado o Estádio da Luz, naquela noite de março, de forquilha na mão, pelo menos. Caiu um mito para mim, embora, admito, já andasse desconfiado de que era capaz de ser treta. Sempre fui meio reguila.

Portanto, percebi que aquilo não fazia sentido quando vi que nada aconteceu ao Moretto depois daquele jogo. A verdade, é que, em apenas 90 minutos, ele deu, tirou, voltou a dar, voltou a tirar. Com isso fez nascer um relato engraçado e poucas vezes visto. «Bola no Moretto...Que erro...Grande defesa!». Umas cinco vezes, talvez. Esta tirada transformou-se no «Remate rasteiro...por cima da trave!» do século XXI. O «Fraco e à figura...golo!» dos tempos modernos.

Moretto recebe, Moretto tenta repor, Moretto entrega a bola a Ronaldinho, Moretto evita o golo. Volta a entregar a bola ao Etoo e volta a defender. Parecia um relógio suíço, mas com os ponteiros trocados.

Criava o problema e apresentava a solução. Entregava o ouro ao bandido, mas num saco furado. Respondia a uma pergunta que tinha acabado de fazer. Naquele jogo, Moretto era o brinde e a fava na mesma fatia do bolo-rei.

O Barcelona daquela altura era ainda um projeto da futura máquina de Guardiola, mas já em fase muito aceitável. Caminhava para ser campeão europeu e iria mesmo eliminar o Benfica, mas só no conforto do lar. Na Luz caiu na armadilha de Moretto, «O Indeciso». Passou o jogo a tentar perceber o que queria aquele guarda-redes de ideias baralhadas. O homem que estava lá para os ajudar e, ao mesmo tempo, complicar a vida. Um ser estranho, devem ter pensado.

Naquele dia nasceu o mito em torno do que ia na cabeça do guarda-redes. Até hoje ninguém sabe. Mas não é importante, porque não foi só ali. Moretto, no fundo, sempre foi um dá e tira. Quando chegou ao Benfica, por exemplo, deu a ideia que ia ser uma boa aposta. Mas tirou-a logo a seguir.

«Cartão de Memória» é um espaço de opinião/recordação acerca dos mais míticos jogos do século XXI, o tempo de existência do Maisfutebol. A ordem dos jogos reflete apenas a vontade do autor. Pode sugerir-lhe outros momentos através do Twitter.