1 de novembro de 2005: Inter-F.C. Porto, 2-1

Não vale estilhas. Sejamos sinceros: quando se joga na rua ninguém quer ser guarda-redes. É um pouco o inverso do que acontecia na praia, onde era bem mais engraçado uns mergulhos para a areia do que galgar aqueles altos e baixos a tarde toda. Na rua, como quem ia à baliza ia obrigado, a regra era estabelecida à priori: Não vale estilhas.

E quem diz estilhas, diz mísseis, bojardas, tiros, petardos, estouros, pastilhas ou, simplesmente, chutar de força. E todos as outras variações.

Aquilo era aceite de forma natural, como todas as outras regras. Se a bola passasse o limite era fora; se alguém fosse rasteirado era falta; se o guarda-redes não chega não é golo e se o remate é muito de força não conta. Toda a lógica do mundo.

Ir à baliza no futebol de rua era um martírio evidente. Mesmo quando não havia um guarda-redes fixo e era à vez, iniciava logo o concurso para saber quem dizia primeiro: «Sou o último». Como se fizesse grande diferença em jogos em que o resultado tipo é um 15-14.

Lembro-me bem da primeira vez que me anularam um golo com aquele argumento. «Não vale, foi muito de força». Eu aceitei de bom grado. «Bem, já chuto de força...». Foi quase uma medalha.

Portanto, na minha rua nunca havia golos em força. O que me fez admirá-los. Ainda hoje, sempre que ouço a palavra «Golaço!» olho para a televisão na esperança de ver um remate de fora da área, ao ângulo

Não quer dizer que os outros não sejam bons. Mas depois de tantos anos privado de golos daqueles, sabe sempre bem admirar este mundo diferente onde ninguém se queixa se a bola lhe deixar uma marca na perna ou «queimar» nas mãos. Ou entrar na baliza, claro está.

Há dias fiz este exercício: pensar no primeiro golaço que me venha à cabeça. Quase instantaneamente vi Roberto Carlos atirar a bola perfeitinha pelo lado de fora da barreira da França antes de entrar na baliza do Barthez. Acho que é o meu grande golo de eleição, categoria que inventei agora mesmo.

Entretive-me por uns tempos a lembrar aquele golo até que outro me saltou à mente.

Ainda vejo Júlio César a orientar a barreira. Verón de braço esticado a perguntar-lhe o lado. Pergunto-me se algum deles pensou que aquilo era mesmo necessário. Que o lance tinha mesmo perigo.

Tinha, pois claro. Não conheciam o pé esquerdo de Hugo Almeida. Cá entre nós: eu também não. Aliás, julgo que poucas mais vezes o vi depois daquela noite num San Siro fechado a cadeado, num jogo em que se ouvia os jogadores a conversar e os berros do Co Adriaanse. Um jogo que começou muito bem para o lado português mas que se esfumou perto do fim, por culpa de outro Júlio, o Cruz, que fez dois golos. Nenhum deles de força.

Mas o culpado maior daquela obra de arte de Hugo Almeida foi Júlio César. Tudo se tinha resolvido com um simples recado ao portista. O mesmo que eu já disse, que os meus amigos diziam e, acredito, o leitor também, no íngreme caminho para o meio dos postes.

«Cuidado! Não vale de força!».



«Cartão de Memória» é um espaço de recordação acerca dos mais míticos jogos do século XXI. A ordem reflete apenas a vontade do autor. Pode sugerir-lhe outros momentos através do Twitter.