Em 2004, numa das mais deselegantes declarações da carreira, José Mourinho anuncia a saída do FC Porto no flash-interview da conquista da Liga dos Campeões. A forma surpreendeu, mas a mensagem já era esperada.

Tanto que, pouco depois, o Dragão novinho em folha despede-se de Deco, Ricardo Carvalho e Paulo Ferreira. Novamente sem grande surpresa e alarido. Encaixa sensivelmente 70 milhões. Feitas as contas, perdeu treinador, viu sair referências mas encaixou dinheiro. Muito dinheiro.

Sobreviveu a um trágico ano de rescaldo e voltou a ganhar, internamente e na Europa, sempre com base no modelo nascido naquele verão: comprar, afinar, vender.

Tornou-se uma máquina de faturar. Dinheiro, mas também títulos. Desde aquela noite em Gelsenkirchen venceu sete campeonatos em nove. Uns mais facilmente, outros menos. Uns a jogar melhor, outros com menor fulgor.

Fruto de uma forma peculiar de ver futebol e de uma exigência, muitas vezes, exacerbada, o domínio portista nem sempre trouxe a paz que seria expectável. Basta, para isso, lembrar que, desde José Mourinho, não houve um único treinador consensual a liderar a nau portista.

É certo que Villas-Boas o foi, mas apenas enquanto estava na sua cadeira de sonho. A forma inesperada como deixou o clube foi traumática. E o estado de graça esvaiu-se.

Antes e depois, nunca houve consenso.

Co Adriaanse venceu campeonato e Taça de Portugal no mesmo ano. Criou Pepe, fez explodir Quaresma, lançou Helton, inventou Paulo Assunção. Saiu por ser aquilo que o FC Porto lhe pediu: exigente e rígido.

Jesualdo Ferreira venceu três campeonatos em quatro e passou sempre a fase de grupos da Champions. Afinou Bosingwa, descobriu Fernando, transfigurou Bruno Alves, potenciou o melhor Lisandro de sempre e deu escola a Hulk e Falcao. Não chegou.

Vítor Pereira perdeu um jogo em dois campeonatos, jogando praticamente todo o primeiro sem ponta-de-lança. Pelo meio mostrou Mangala, poliu James e ajudou Alex Sandro a fazer com que hoje ninguém se lembre de Álvaro Pereira. Também foi de menos.

Veio Paulo Fonseca e, meio ano depois, a sentença está dada: mesmo que ganhe, não agrada. Percebeu-se quando, após a primeira derrota na Liga, (quase) os mesmos jogadores que estiveram na festa de maio foram recebidos com tochas, insultos e petardos no Dragão. Uma pressão sem sentido e sem efeito. Alguém viu uma melhoria depois daquela noite de Coimbra?

Se a solução fosse trocar (outra vez) de treinador, a mesma estaria, acredito, tomada há muito. Se o FC Porto não o fez é porque sabe que o problema é outro. Há desejos distintos e só os adeptos querem títulos e ponto. Jogadores querem ganhar mais. Treinador quer manter o emprego. Direção quer lucro para que toda a pirâmide seja sustentável.

E se a estrutura ceder (é preciso lembrar que o FC Porto está em quatro frentes com hipóteses de vencer todas) a interrogação mais forte não estará sobre o treinador, o duplo-pivot ou na aposta neste ou naquele central. Estará num onze claramente abaixo dos últimos anos e no modelo criado a partir de 2004.

É, naturalmente, descabido anunciar a sua falência quando, ainda no último verão, 75 milhões entraram nos cofres portistas. Mas exigirá reflexão. O emblema é igual mas tem o mesmo significado quando os craques, que eram de uma vida, são só para uma ou duas épocas? Por muita paixão que haja, que sentido faz celebrar uma venda milionária com a consciência que a equipa ficará enfraquecida?

As estadias são cada vez mais curtas e já é impossível esconder que os jogadores chegam com a ideia que entraram numa ponte que há de desaguar em algum lado. Alguém se lembra, por exemplo, do período em que Jackson não falava em sair? Está em Portugal há ano e meio…

O FC Porto precisa, por isso, saber o que quer. E explicar. Porque com títulos sonham todos, mas só consolam os adeptos. Dez anos depois da saída de Mourinho, o FC Porto vive um novo desafio: pedir para suar a camisola já é de mais. É preciso primeiro convencer a vesti-la de corpo e alma. 

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