O «velho novo Feirense» está de parabéns. Faz 100 anos. Fundado a 18 de março de 1918, «gerações» garantiram a «continuidade com suas heroicas ações». Tal e qual como a letra de Ernesto Campos aqui citada. A que dá corpo ao hino do clube agora centenário.

Com o tempo, deram de si também jogadores, treinadores, atletas. Dirigentes e adeptos. Do velhinho Campo da Mata ao atual Marcolino de Castro, passando pelo do Montinho. Décadas de alegrias, dificuldades, heróis. Histórias inusitadas. Pelo meio, o Feirense vai na sua sexta participação na Primeira Liga. Este ano, a segunda de forma consecutiva. Só à quinta presença, em 2016/17, é que os fogaceiros conseguiram, pela primeira vez, a manutenção.

A festa da subida à primeira elenca os grandes momentos do clube de Santa Maria da Feira. E ligado a todas elas – cinco - está Artur Brandão. Figura maior da história do Feirense, viveu a promoção como jogador (1962), vice-presidente (1977), presidente (1987), elemento do Conselho Geral (2011) e adepto (2016). Falar de – e com – este octogenário é reviver a história do «Civitas». Puxar a fita atrás.

«Praticamente fiquei ligado ao clube aos 14 anos. O treinador do Feirense, que era diretor, jogador, tudo nessa altura, tinha dificuldades em fazer treino conjunto. Eu aparecia na bancada e ele convidava-me para ir treinar. Desde os 14 anos que treinava com a equipa sénior», começa por dizer, ao Maisfutebol, em conversa no café que frequenta. É na Rua São Nicolau, perto do estádio. Antes de uma visita a sua casa, onde guarda um museu de troféus e lembranças.

Só que, chegado à idade júnior, o Feirense não tinha tal escalão. Rumou à Oliveirense – a de Azeméis – e cedo despertara interesse de FC Porto ou Sporting. Esteve nos dragões no final da década de 50 a treinar. «Mas não gostei do ambiente. Os jogadores chegavam de pijama, com cara de quem não tinha dormido. O Pedroto dizia-me: fica por aqui, eu estou a terminar a carreira e tu vais jogar no meu lugar. Insistiu de tal maneira que eu fugi», relata Brandão.

O que ele queria era mesmo «jogar no Feirense». Antes do regresso para sempre, fez «uma coisa inacreditável», ilustra. Jogava pelos juniores da Oliveirense a um domingo, 9h30 da manhã. E o Feirense tinha um particular com o Avanca, à tarde. «Acabou o jogo dos juniores. Se viesse com pressa, apanhava a automotora em Oliveira de Azeméis. Nesse dia, atrasei-me e a automotora estava a partir. O que é que eu fiz? Fui atrás da automotora a correr. Na altura, havia capacidade física para tudo. Até que cheguei ao sítio onde estava o autocarro. Sentei-me, encostei e adormeci. Acordei no intervalo, saí do autocarro, fui para o campo e joguei na segunda parte. Só para poder jogar pelo Feirense», destaca.

Feirense, 100 anos: «A casa da minha avó foi o primeiro balneário»

Depois de ter recebido autorização do Diretor Geral dos Desportos, firmou pelo Feirense no fim dos anos 50. Foi o melhor marcador da equipa na estreia na 1.ª Divisão, com nove golos dos 21 da equipa, que não evitou a descida. Foi a mesma época que teve a inauguração do Marcolino de Castro. «Em 59 dias, fez um campo novo», lembra Brandão, sobre o trabalho do então dirigente que dá nome ao atual estádio.

Dessa época, Brandão marcou a FC Porto, Sporting e Benfica, numa era em que Ramalho, Eduardo ou Raimundo eram outras figuras do clube.

Artur Brandão, um dos históricos jogadores do Feirense

«Havia mais que 11 a equipar, metade tinha de sair»

Brandão terminou carreira no fim dos anos 60 e, em 1969, tornou-se presidente. Por vontade das gentes. Mas «abismado». «Caçaram-me bem. Era um teso, tinha acabado o curso, estava a começar a trabalhar», recorda.

Pela sua mão, houve melhoramentos no estádio. «Quando havia jogos particulares, havia mais que 11 jogadores a equipar, metade tinha de sair. Então, fomos fazendo degraus, cobertura da bancada central». E mais obra. Hoje, em «homenagem», Artur Brandão dá nome às escolas de formação do clube, fruto do trabalho da década de 80 para a criação de uma zona desportiva.

1988/89: a subida portuguesa com «gozo especial»

Após 1962 e 1977, o Feirense festejou a terceira subida à 1.ª Divisão em 1989. Foi o campeão da Zona Centro da 2.ª Divisão, numa época que deu «gozo especial» a Artur Brandão, então presidente. «Havia a mania de ir buscar estrangeiros. Entendi que no país e na região havia jogadores. Fiz uma equipa de portugueses, lutei até ao fim com a Académica e subimos. Só tínhamos um cabo-verdiano [na verdade, moçambicano, Rendeiro]. O jogador que vivia mais longe era em Valadares. O resto, tudo da zona. Tínhamos uma equipa de juniores boa e fomos buscar lá dez jogadores», descreve Brandão.

Dessa equipa era treinador Henrique Nunes. Está ligado a duas promoções do clube: 1977, como jogador, 1989 como treinador. A última, «realmente marcante». «Cerca de 50 por cento dos atletas vinham comigo desde a formação: Quitó, Couto, David, Pedro Martins, Pinto… muita malta. Tinham sido meus juvenis, juniores. É o mais marcante, porque foi trabalho de continuidade», justifica.

Equipa do Feirense que garantiu a subida à 1.ª Divisão, época 1988/89. Em cima: David, Miguel, Rendeiro, José Augusto, Quitó, Rufino. Em Baixo: Artur, Couto, Pinto, Pedro Martins, Licínio e mais dois jovens.

Entre os enumerados, Quitó. Joaquim António Fernandes Mota. O miúdo de Lourosa que fez toda a carreira no Feirense, de 1983 a 2003. «Cresci e fiz-me homem em Santa Maria da Feira e considero-me um cidadão de Santa Maria da Feira devido ao que fiz no clube», atira.

Apesar da sua terra natal, onde outrora moravam grandes «rivalidades» com o clube da Feira, Quitó continua a acompanhar os fogaceiros. «Agora, como adepto, ainda faço parte da secção de veteranos, fazemos jogos particulares», conta. Na retina de muitas memórias, um «clube familiar» e o último jogo da subida em 1989: Um Feirense-Caldas, 6-2: 21 de maio de 1989. «Os últimos jogos da segunda divisão são indescritíveis. Era gente de todo o lado», espelha.

«O motorista parou e as pessoas bateram palmas»

Artur Brandão é uma enciclopédia do Feirense e é por isso que está a preparar um livro de tudo o que ali viveu. Nessas páginas, constará este capítulo de 1961. O ano que antecedeu o da primeira subida à 1.ª Divisão. Os fogaceiros, na zona norte da segunda, safaram-se da descida ao vencerem em Peniche, beneficiando do empate de Chaves e Gil Vicente. Ramin, o guarda-redes, trabalhava num quartel e não dormira na noite anterior. Foi um dos homens do jogo.

«Ganhámos 3-2. Acabou o jogo e há uma invasão. A multidão [do Peniche] trouxe o Ramin até ao balneário. O próprio adversário reconheceu a grande exibição. Se ganhássemos, não descíamos, mas íamos fazer a liguilha. Só havia uma hipótese de a gente se safar. Havia um Chaves-Gil Vicente, se empatassem, já não íamos à liguilha. Já a meio caminho, na autoestrada, ninguém sabia de nada. Na altura, havia rádios. E eles empataram. Parámos os carros no meio da estrada, uma reta grande. Tinha uma valeta. Abrimos as portas e viemos para a estrada. O primeiro que passou era um autocarro. O motorista parou, as pessoas vieram a janela e começaram a bater palmas. Foi uma festa que fizemos ali. Acabámos por jantar na casa do presidente, Marcolino de Castro. E foi festa até às tantas».

Um centenário de gerações

Artur Brandão, Henrique Nunes e Quitó são apenas alguns dos personagens de uma história que tem sentidos diversos e tocantes a cada um. «É especial», atira Brandão, em tom saudoso. Porém, diz que «as pessoas conhecem, mas não reconhecem. É por isso que vou enchousar os meus conterrâneos com o tal livro que estou a fazer. Tomem lá, está aqui. Fica para a história».

«Um orgulho enorme fazer parte da história do clube em que fazemos a carreira toda», acrescenta, por sua vez, Quitó. Henrique Nunes, sobre o único clube como jogador e que também treinou na quarta presença na Liga, em 2011/12, sustenta que «para este centenário ficar ainda mais marcado é o Feirense ter a sua permanência na Liga».

Às portas do centenário, Brandão viveu-o quase todo e não tem dúvidas. «Isto parece uma lança em África».

E as «gerações» vão continuar pelo «velho novo Feirense».