Três treinadores despedidos em dois dias na Liga. Manuel Machado deixou o Arouca um mês e uma semana depois de chegar. Na Madeira, Jokanovic chegou depois do Natal para substituir o próprio Machado e foi afastado agora. O Moreirense tinha contratado Inácio no fim de novembro para render Pepa, que entretanto foi para o Tondela, mas o treinador que pelo meio venceu a Taça da Liga também não aguentou até ao final da época. Saiu Inácio para dar lugar a Petit, que por sua vez tinha saído do Tondela. Confuso? Muito, num campeonato que é uma incrível dança de cadeiras e está a bater recordes de chicotadas. O Maisfutebol debateu o assunto com Manuel José, um dos treinadores com mais experiência de Liga, e com José Pereira, presidente da Associação de treinadores (ANTF), e ambos falam de um problema do futebol português, que prejudica a estabilidade e a qualidade do jogo e está relacionado com questões estruturais. Com responsabilidades para os dirigentes, mas também para os próprios técnicos. Eles precisam de se fazer respeitar mais, dizem.

São 17 mudanças de treinador em 13 clubes. Duas delas foram voluntárias, técnicos que sairam para assumir outros clubes. Casos de Jorge Simão, que trocou o D. Chaves pelo Sp. Braga, e de Lito Vidigal, que deixou o Arouca para rumar ao Maccabi Telavive. Jorge Jesus, no Sporting, e Rui Vitória, no Benfica, são nesta altura os treinadores há mais tempo no mesmo clube na Liga, ainda sem duas temporadas completas. Restam mais três que se mantêm desde o início da temporada: Nuno, no FC Porto, Pedro Martins, no V. Guimarães, e José Couceiro, no V. Setúbal.

Há quatro treinadores que já orientaram duas equipas esta época: Pepa (Moreirense e Tondela), Jorge Simão (D. Chaves e Sp. Braga), Manuel Machado (Nacional e Arouca, o único afastado de dois clubes na temporada) e Petit (Tondela e agora Moreirense). A Liga já bateu de longe o registo de maior número de chicotadas dos últimos anos, 12 em 2011/12. A tendência parecia ser de maior estabilidade nas temporadas que se seguiram, mas esta época assistimos a mudanças a um ritmo incrível, sem comparação aliás pela Europa fora.

Ser treinador na Liga portuguesa é um trabalho cada vez mais precário. E porquê?

O diagnóstico de Manuel José, um dos decanos dos treinadores portugueses, com 567 jogos no banco na Liga, que esteve ligado às primeiras iniciativas de associativismo dos treinadores em Portugal, toca em vários pontos: «Durante alguns anos parece que houve uma certa acalmia, que a confiança nos treinadores não se baseava só nos resultados, mas principalmente na competência. Agora voltámos ao mesmo. Os treinadores também não complicam grande coisa porque os salários são baixos, não querem conflitos para não fechar portas.»

«É facílimo fazer acordos, os treinadores saem sempre prejudicados e não levantam problemas», insiste Manuel José: « A mentalidade dos dirigentes é péssima. Portanto, acabam por tirar partido da fragilidade da maior parte dos treinadores. Os dirigentes, que são a pior coisa que há no futebol, aproveitam-se. Há pouca cultura desportiva. Eu digo sempre o mesmo. Enquanto insultam a família do treinador não há problema. Quando insultam a família do presidente, sai o treinador. Há uma falta de respeito muito grande para com os treinadores»

Manuel José levanta várias outras questões. «Há uma série de outras coisas, uma série de agentes que controlam quem entra, quem sai, a preços baixíssimos, porque as pessoas têm necessidade de trabalhar. Os treinadores ficaram muito mais vulneráveis, os clubes não têm dinheiro, pagam salários muito baixos. Eu costumo dizer que 60 por cento dos treinadores, como está provado, muito mais este ano, é precário. Não vale a pena fazer carreira, ganha-se para comer e pouco mais.» E continua: «Fazem-se contratos de 9/10 meses, é raro haver contratos de um ano.»

Também questiona que esteja a ser cumprido o que está determinado no contrato coletivo de trabalho dos treinadores, que estipula como salário mínimo para a Liga o equivalente a oito salários mínimos e metade para a II Liga. «Os clubes têm que pagar pelo menos o salário mínimo, nas segundas divisões e por aí fora pagam um terço. Ninguém se interessa por isso, os clubes fazem o que querem e lhes apetece.»

José Pereira, o responsável pela ANTF, não entra em pormenores sobre este assunto. «Os contratos são entre os treinadores e os clubes, são situações que não nos compete divulgar, O que tem é que estar obrigados aos ordenados mínimos, e esses são cumpridos. Se o treinador abdica ou não é outra situação. Mas acredito que não faz sentido contratualizar e depois reduzir.»

Mas, embora comece por apontar o dedo aos dirigentes no diagnóstico do problema, também José Pereira defende que está na altura de os treinadores serem mais exigentes com os clubes. «O que está a acontecer esta época preocupa, e preocupa quando é a demonstração inequívoca de falta de planeamento, de saber escolher os treinadores de acordo com os projetos e os objetivos. Assim o nosso futebol fica debilitado. Como é que uma equipa pode produzir bom futebol com esta instabilidade? Mas os treinadores estão a facilitar demasiado as coisas no sentido de serem despedidos por dá cá aquela palha. É altura de os treinadores dizerem basta e imporem as suas regras. Alguns aceitam trabalhar em situações super precárias, depois dá naquilo que se está a ver.»

Mas esta facilidade com que se está a despedir está mesmo relacionada com o facto de os treinadores terem cada vez menos capacidade de reivindicação? José Pereira diz, mais uma vez, que a questão tem duas abordagens: «Em primeiro lugar está a incompetência dos dirigentes e depois alguma falta de exigência dos treinadores para consigo mesmos.»

Treinadores «não podem trabalhar a qualquer preço e de qualquer maneira»

«Se os clubes tivessem que indemnizar os treinadores convenientemente, seriam responsáveis por essa atitude. Ninguém é responsabilizado», prossegue José Pereira. «O treinador sair de um clube é uma prerrogativa do clube. Mas este número exageradíssimo de saídas não faz sentido. Passa por os treinadores serem mais exigentes com os clubes. Não podem trabalhar a qualquer preço e de qualquer maneira.»

José Pereira defende que isso terá de passar por uma posição individual de cada treinador, e não por uma atitude de classe. «Aquilo que se exige aos clubes é que tenham um treinador certificado. Se os treinadores de livre vontade acertam a saída, nós aí pouco podemos fazer. Pela experiência que tenho não acredito que sejamos capazes, por medida imposta por nós, de mudar a situação.»

«Cada um de nós é que tem de tomar uma posição que imponha respeito por si próprio e pelo próximo que vier», diz José Pereira: «Se não nos dermos ao respeito não nos podem respeitar.»

«Corrupção financeira e moral» e o exemplo espanhol

Há cada vez mais treinadores, também. «A oferta é imensa, a procura é pouca», constata Manuel José. Que de resto identifica aqueles que considera serem outros problemas em torno dos treinadores, nomeadamente na formação e no acesso à profissão.

«Para chegar à Liga são precisos oito anos e gastar à volta de 15 mil euros. Um jogador quando termina a carreira tem 34, 35 ou 36 anos. São aos 45, 46 anos é que pode treinar na I Divisão. Isto são os treinadores oriundos do treino. Enquanto os da universidade aos 18 anos podem começar. Há cada vez mais treinadores, principalmente oriundos da academia. Os outros têm que jogar, não têm tempo para tirar cursos. Os que precisam de ter mais defesa são os que são menos defendidos. Eu comecei a treinar aos 33 anos. E joguei quase 20 anos», observa: «Nisto é que os treinadores têm que fazer um trabalho tremendo, para alterar as coisas.»

Manuel José também aborda a questão dos treinadores que acumulam mais que um clube ao longo da época, num tom crítico em que admite uma solução como a que existe em Espanha, onde um treinador que deixa um clube não pode voltar a treinar outro na mesma época.

«Em Espanha é assim há 30 anos. Nós não seguimos este exemplo», diz, falando de um sistema que, segundo José Pereira já tinha dito ao Maisfutebol, foi já debatido e rejeitado em várias ocasiões, nomeadamente por se considerar que viola o direito ao trabalho. «Isso é conversa», diz Manuel José: «A obrigação de não poder contratar um treinador sem fazer um acordo, é que é o busílis da questão. Não alteram porque sabem que podem ter de pagar. Assim continuam como querem. Mas a Liga e a Federação sabem tudo isso. Em relação a Espanha há coisas que podemos plagiar porque elas são boas.»

Dos treinadores para o panorama mais lato do futebol português, Manuel José mantém o discurso crítico: «Os clubes têm cada vez mais dificuldades financeiras. Os orçamentos que têm de apresentar são outra mentira, devem dois, três meses aos jogadores mas têm a documentação assinada. Isto sabe-se nos «mentideros», como se diz em Espanha, mas os responsáveis não sabem. Isto é uma forma de corrupção, financeira e moral. Mas tudo fica na santa paz.»

E, voltando aos treinadores, eles são o elo mais fraco. «O treinador é a parte mais frágil do futebol», diz Manuel José, ele que treinou Sporting, Benfica, V. Guimarães, Sp. Braga ou Boavista e orientou o Belenenses em 2003/04, o seu último clube em Portugal. Depois de muitos anos no Egito, com passagens também pela Arábia Saudita, Angola e Irão, já assumiu que não voltará à treinar, quando está perto de completar 71 anos: «Não volto. Só num caso excecional. Para mim acabou. Aqui em Portugal já tinha desistido. Treinei o Belenenses em 2004, depois decidi que aqui não valia a pena. Lá fora há clubes com muito melhores condições. Achei que não valia a pena, nem desportiva nem financeiramente.»

E isto com «os treinadores mais qualificados do mundo»

A realidade da Liga, esta desvalorização dos treinadores, contrasta com o prestígio internacional que os técnicos portugueses conquistaram  nos últimos anos, nota de resto Manuel José. «É graças aos treinadores que o futebol em Portugal atingiu o que atingiu, na evolução dos jogadores, dos sistemas, da equipa. Hoje temos treinadores portugueses em todos os cantos do mundo», defende: «Dá-se mais valor aos treinadores portugueses lá fora do que aqui. Aqui dá-se importância a sete ou oito e o resto é carne para canhão.»

«O que está a acontecer em Portugal ultrapassa tudo o que devia numa profissão que merecia ser respeitada», reforça José Pereira: «Somos dos treinadores mais qualificados do mundo.»