O Anorthosis foi visitar Famagusta nesta terça-feira. O clube que nasceu na cidade que é hoje território da auto-proclamada República Turca de Chipre do Norte e se mudou para Larnaca para continuar a representar o Chipre fez uma viagem ao seu passado, para que jogadores e todos os membros da equipa conheçam as suas raízes. Nem de propósito, fê-lo no dia em que o Chipre deu um passo formal no caminho da reunificação, ainda que apenas no futebol. 

A FIFA e a UEFA patrocinaram esta terça-feira a assinatura de um protocolo entre a Federação do Chipre (FFC) que o mundo reconhecia e a Federação do Chipre Turco (FFCT), concluindo um longo processo de negociações. O futebol à frente da política, mas com cautelas. O comunicado da UEFA sobre o assunto faz questão de frisar que este acordo «diz apenas respeito ao futebol e não abre qualquer precedente para a questão política cipriota», além de que é provisório «até que seja encontrada uma solução para o Chipre».

Mas é um passo. E encontrou o Anorthosis a fazer esse caminho, literalmente. Marco Leite, adjunto de Jorge Costa no Anorthosis Famagusta, estava a atravessar a fronteira no autocarro da equipa quando conversou com o Maisfutebol.

«Hoje viemos com a equipa a Famagusta, conhecer um pouco da história do clube», conta Marco Leite, impressionado com o que viu. E com o que não viu. Varosha, o cenário que resume a vida de um país dividido. Varosha era a zona turística de eleição do Chipre até 1974, quando aconteceu a separação. Foi abandonada, e deixada desde então ao abandono. Está deserta, a única presença humana são os militares turcos que a patrulham.

«Está completamente vedada e interdita, é uma cidade fantasma. Tem provavelmente uma das praias mais bonitas do Chipre. Impressiona», conta Marco Leite, explicando de caminho que era aí que ficava o estádio do Anorthosis. «Hoje só o conseguimos ver ao longe. Não se consegue ver totalmente, tem prédios à frente.»

Jogadores e treinadores viram de resto a cidade de Famagusta. E visitaram um colégio onde ainda se estuda grego. «Ainda há na cidade alguns focos de cipriotas gregos», conta Marco Leite. Se para os estrangeiros esta foi uma experiência forte, para os cipriotas teve um peso ainda maior. «As pessoas vivem isto de uma forma muito forte, isto é a história do clube.»

Se para a Europa Ocidental tudo isto é muito distante, a pequena ilha no Mediterrâneo vive no dia a dia com intensidade esta divisão, conta Marco Leite. Sobretudo em Larnaca, onde estão muitos dos que fugiram do norte quando se deu a ocupação.

Foi em 1974, quando a junta militar ditatorial que dominava a Grécia tentou anexar o Chipre. A Turquia reagiu entrando no país com um forte contingente militar. Acabou por se estabelecer a norte, ocupando um terço do território do Chipre, e declarar a fundação da República Turca do Chipre do Norte. Que, até hoje, é apenas reconhecida pela própria Turquia.

Ergueram-se barreiras físicas. A capital, Nicósia, teve um muro que durou muitos anos depois de cair o muro de Berlim. Ainda está dividida, tal como toda a ilha, por aquela a que chamam a Linha Verde, uma extensão de 180 quilómetros que é uma zona desmilitarizada e controlada pelas tropas das Nações Unidas.

Com milhares de cipriotas gregos, o Anorthosis também fugiu da ocupação turca, refugiando-se em Larnaca. Quarenta anos não é assim tanto tempo, e tudo isto está bem vivo na memória das pessoas. «Não gostam muito uns dos outros. Têm alguma dificuldade em passar a fronteira», sintetiza Marco Leite.

A rivalidade é futebolística também. O Chipre turco tem há várias décadas a sua Federação, os seus clubes e uma seleção, que não competem internacionalmente nem têm grande repercussão fora do território, explica Marco Leite. Mas a rivalidade é grande, diz, em relação aos clubes turcos propriamente ditos. «Há uns anos o Anorthosis eliminou o Trabzonspor na Liga dos Campeões (na segunda pré-eliminatória de 2005/06) e ainda hoje falam disso com frequência.»

Até agora tinha havido alguns sinais de aproximação entre o Chipre e a Turquia, mas não decisões formais. Houve uma tentativa de reunificação dos dois territórios em 2004 promovida pelas Nações Unidas, mas foi chumbada pelos cipriotas gregos. E a ocupação deste território no Chipre tem sido um dos grandes  obstáculos à adesão da Turquia à União Europeia.

Agora, o futebol deu um passo formal. Com que alcance, ainda não é totalmente claro. «Pelo que me é dado perceber as pessoas não sabem ainda todos os contornos do acordo. Sabem que foi assinado um acordo, mas acreditam que seja muito mais extenso do que o acordo de tréguas. Vamos perceber melhor nos próximos dias», diz Marco Leite.

Em linguagem de comunicado oficial, a UEFA diz que o acordo implica que a Federação turca do Chipre, bem como os clubes seus filiados, se tornarão membros da Federação cipriota. E que é esta quem terá «competência sobre assuntos do futebol, incluindo o direito a organizar campeonatos».

Marco Leite, que na época passada já tinha estado com Jorge Costa no AEL Limassol, também no Chipre, é um de muitos portugueses no futebol cipriota e é também colaborador do Maisfutebol na rúbrica Crónicas Made in Portugal, diz que no país há esperança de que não esteja assim tão longe uma solução para a questão política que divide o Chipre.

«Foi descoberto gás natural no Chipre, há aqui uma questão geo-estratégica em que se podem conjugar vários interesses dos países com influência no Chipre. Pode-se adivinhar que venha a haver um tratado de paz, em que fiquem todos a ganhar», admite.

Para já, avançou o futebol.