«CHUTEIRAS PRETAS» é um espaço de Opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Um olhar assumidamente ingénuo sobre o fenómeno do futebol. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias. Pode seguir o autor no Twitter. Calce as «CHUTEIRAS PRETAS».

Fanfarrão, maus modos, honestidade discutível, verborreia irritante, polémico.

Donald Trump? Não, infelizmente não. Refiro-me ao meu querido futebol português.

Contaminado e profundamente doente. Um verdadeiro «Shithole», já que insistem em trazer para a conversa o imundo presidente dos EUA.

De repente, lembro-me de Noé, o da Arca. Imagino-o a levar para bordo os mentirosos, os ignorantes, os que se servem do futebol e o sujam, os que escrevem manuais para marionetas e os que subjugam os mais pequenos, chantageando agora para mais à frente lucrarem.

Noé, borda fora com eles. De preferência em alto mar.

Os bastidores da bola são lugares pouco recomendáveis, feitos de malas negras e sussurros ensurdecedores. Tudo aquilo que um dia juramos renegar. Bendita idade da inocência!

Mas este é o meu futebol, o futebol do meu país, e não serei ingrato. Agarrar-me-ei às fantásticas memórias e aos pedaços que permanecem intocados. Sim, existem. Ainda acredito no talento individual, na capacidade coletiva, no drible e no remate.

Conhecemo-nos, eu e o nosso futebol, em meados de 1978. O FC Porto encerrava por esses dias um longo jejum de 19 anos sem campeonatos nacionais; um dia depois do meu nascimento, Alvalade recebeu um Sporting-Porto para a taça, 2-1; quatro dias depois, um decisivo Porto-Benfica para o campeonato, 1-1.

Aos cinco dias de vida, eu era um bebé inconsciente e já profundamente viciado em futebol.  

Mais tarde vi as tristes meias-finais do Euro84, França-Portugal, às cavalitas do meu pai. E, antes, o famoso roubo de Basileia, Juventus-FC Porto. Acompanhei esse crescimento europeu dos dragões até à valsa de Madjer e Juary em Viena.

Não dormi para ver a neve de Tóquio no Peñarol, segui o Benfica em duas finais consecutivas da Taça dos Campeões Europeus – PSV e AC Milan, acumulei centenas de presenças em bancadas nacionais para jogos da I Divisão, II Divisão, III Divisão e distritais.  

De mão dada com o meu avô e o meu padrinho fui atrás do Leixões por esse país afora. Invadimos Cantanhede numa liguilha contra o Mirense, futebol e mais futebol.

Colecionei cadernetas e rasguei saquetas de cromos, assisti religiosamente ao Domingo Desportivo do senhor Tovar, aplaudi a ressurreição internacional da seleção de Portugal no Euro96.

Vi Michel Preud’Homme e o génio de João Vieira Pinto, a cabeça de ouro de Mário Jardel, o repentismo genial de Krasimir Balakov, mas também o talento de Abdel Ghany (Beira-Mar), Radi (Desp. Chaves), Ion Timofte ou Erwin Sanchez (Boavista).

Não é fácil deixar de acreditar no futebol português. Podem tentar, podem obrigar-me, mas não vão conseguir.

Há emails nojentos, há bancadas a ameaçar o colapso, há dirigentes incapazes de uma declaração educada, há programas televisivos determinados no escárnio e maldizer.

Mas para mim o futebol português ainda é um lugar de conforto. Há uma ligação emocional demasiado forte, inúmeros bons momentos vividos, há artistas como Rúben Ribeiro, há décadas de inconfidências e cumplicidade.

Não é fácil deixar de acreditar em tudo isto. Há muita gente a fazer mal à nossa Liga, há comportamentos aviltantes, situações incompreensíveis, mas não vão conseguir calar-me. Não vão conseguir, aliás, calar o meu amor pelo nosso futebol.

Ganhem vergonha na cara, senhores responsáveis. Não façam da nossa paixão o vosso «Shithole».

Limpem o que há a limpar, julguem o que há a julgar, eliminem os focos de putrefação. E, depois, deixem-nos voltar a fruir do jogo. Ainda se lembram como era?
       
«CHUTEIRAS PRETAS» é um espaço de Opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Um olhar assumidamente ingénuo sobre o fenómeno do futebol. Às quintas-feiras, de quinze em quinze dias. Pode seguir o autor no Twitter. Calce as «CHUTEIRAS PRETAS».