Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.
Para o que uma pessoa haveria de estar guardada.
Anda meses a tratar da criação para depois ter de lidar com uma coisa destas.
‘Amigos’. Amigos, dizem eles.
Pois bem, se pensava que 2020 já não podia reservar mais surpresas, estava enganado. Porque ele ainda tem espaço para trazermos ao Maisfutebol um caso 'policial' que mistura agropecuária e ciclismo.
Sim, leu bem.
«Esta semana, uns amigos convidaram-me para ir jantar a casa de um deles. À minha espera, tinha um arroz de cabidela. E as provocações que já se repetiam há umas semanas: ‘isto ficava ainda melhor, era com uma galinha caseira’. E eu a dar-lhes razão, já lhes tinha prometido uma galinha algumas vezes. No fim do jantar veio a surpresa: um vídeo que mostrava os meus amigos a assaltarem-me a capoeira e a roubarem-me uma galinha. Convidaram-me para ir comer a minha própria galinha.»
Vai na Volta, e a galinha era dele. Isso mesmo.
«Tive de me rir, aquilo teve mesmo muita piada», concede, Amaro Antunes.
E aqui não há nenhuma coincidência. Após semanas a sermos envolvidos em contagens de montanhas, fugas, sprints intermédios, contrarrelógios e camisola rosa para aqui, camisola azul para acolá, é ao camisola amarela que damos atenção.
Sim, porque no meio da epopeia de João Almeida e Rúben Guerreiro no Giro, nas nossas estradas correu-se a 82.ª Volta a Portugal.
Para todos, e tendo em conta as circunstâncias de um 2020 marcado pela pandemia, a edição número 82 foi uma das mais especiais de sempre. Mas há pelo menos uma pessoa para quem foi mesmo a mais especial: Amaro Antunes, pois claro.
Num ano absolutamente atípico, na principal prova velocipédica nacional imperou o que tem sido a norma: a vitória da W52-FC Porto. A quinta em cinco anos.
Mas só a anormalidade deste 2020 permitiu que abríssemos estas linhas com o insólito roubo de uma galinha.
Porque foi um confinamento de cerca de três meses que tornou Amaro Antunes num criador de galinhas. «A criação está a ficar forte», brinca sobre os cerca de 30 animais que adquiriu.
O tempo que lhes dedicou, contudo, não beliscou nem um pouco que fosse as qualidades de ciclista. A prova está à vista de todos: o lugar mais alto do pódio da Volta a Portugal e a tão ambicionada camisola amarela.
E pensar que o pai não o queria a andar de bicicleta…
O ciclismo a correr-lhe no sangue desde sempre
A relação de Amaro Antunes com as bicicletas vem desde o berço. Ou melhor, vem-lhe mesmo no sangue.
«O meu avô, o meu pai e o meu tio foram ciclistas. O meu avô chegou a correr pelo Sporting nos anos de ouro do ciclismo do clube e o meu pai ainda fez uma Volta a Portugal com a camisola do Ginásio de Tavira», começa por contar o ciclista de 29 anos, natural de Vila Real de Santo António.
Por isso mesmo, este algarvio de gema não se lembra da sua existência sem ciclismo. E desde muito novo começou a imaginar-se num fato de licra a pedalar estrada fora.
«Quando eu tinha oito ou nove anos, o meu pai ainda corria e quando ele chegava a casa depois de uma prova, eu adorava vestir-me a rigor e levantar os troféus que ele trazia», recorda, sorridente.
Porém, não foi totalmente pacífica a entrada do pequeno Amaro para o ciclismo.
«O meu pai não gostava muito da ideia de eu também ser ciclista. Tentava evitar isso, porque dizia que era uma vida muito dura que não queria para mim», afirma.
Mas havia pouco a fazer. Porque o filho só tinha olhos para o ciclismo. Ou quase.
«Quando eu andava no 5.º ano ele prometeu-me uma bicicleta se eu passasse de ano. E eu passei. Durante uns tempos ainda acumulei o ciclismo com o andebol, mas aquilo de que eu gostava mesmo era de ciclismo», confessa, revelando que ao perceber isso, o pai deu-lhe apoio total.
Após a aposta no ciclismo, rapidamente Amaro Antunes percebeu a dureza de que lhe falava o pai.
«Percebi logo que era uma modalidade mesmo muito exigente. Não só no treino, mas também em tudo o que implicava: o descanso, a alimentação, o ter de dizer muitas vezes ‘não’ aos amigos… mas nunca vacilei porque era mesmo isto que eu queria», orgulha-se.
Apesar da genética de ciclista e da rigorosidade da preparação, desengane-se quem achar que Amaro Antunes saboreou logo as primeiras vitórias.
«Comecei como cadete e no primeiro ano, muitas vezes não conseguia chegar com o pelotão. E cheguei mesmo a desistir de algumas provas. Estava a competir com gente que tinha começado nas escolinhas de formação e isso notava-se. O que me mostrou que tinha de me dedicar ainda mais», confessa.
A correr num clube de Loulé que obrigava ainda a longas viagens – sempre na companhia do pai, que se tornou treinador pessoal e companheiro de treinos – Amaro Antunes teve os primeiros grandes sucessos em 2008, no primeiro ano de juniores.
«Nesse ano, fui campeão nacional de fundo, de contrarrelógio, venci a Taça de Portugal e a Volta a Portugal do futuro», orgulha-se, explicando uma das coisas que faziam a diferença.
«Já tinha uma mentalidade profissional e esses bons indicadores motivaram-me para os anos seguintes», aponta.
Foi mais ou menos por essa altura, apesar de ser ainda sub-23, que Amaro Antunes começou a treinar com um conterrâneo, uns anos mais velho, e que se viria a tornar um amigo inseparável e companheiro para a vida: Samuel Caldeira.
«Éramos do mesmo clube, mas eu ainda era júnior e ele sub-23. E o Samuel é um ciclista que gosta de treinar forte, impõe ritmos violentos e eu ia sempre com a corda no pescoço para o acompanhar», lembra.
Certo é que esses treinos começaram a dar resultados e até resultaram num vaticínio que se cumpriu há poucas semanas.
«Quando ele tinha 21, 22 anos, e começou a aparecer como ciclista, lembro-me de, a certa altura, quando ele me acompanhava e me perguntavam quem era aquele rapaz, eu responder: um dos próximos vencedores da Volta a Portugal», contou Samuel Caldeira à agência Lusa, após a conquista de Amaro Antunes.
«Agora, costuma dizer que não me apertou o papo quando podia e agora é ele que sofre para me acompanhar», reage numa gargalhada Amaro Antunes quando confrontado com a declaração do colega de quarto e padrinho de casamento.
A experiência negativa que o ajudou a crescer
Apesar do grande futuro que lhe auguraram desde cedo, houve várias montanhas que o trepador algarvio teve de escalar no caminho até ao topo.
Uma das etapas mais duras da carreira aconteceu na primeira experiência internacional, em 2013.
Uma proposta da italiana Ceramica Flaminia-Fondriest fê-lo imigrar para um projeto que se revelou ruinoso apesar da sustentação que aparentava ter.
«O projeto tinha tudo para ser interessante. Era uma equipa-satélite da Saxobank, que nos deixava perto de uma equipa do World Tour. Fui com mais três ciclistas portugueses, mas tudo correu mal», introduz, ele que teve como companheiros de aventura Pedro Paulinho, Rafael Reis e António Barbio.
«O que nos foi proposto incluía habitação e todas as condições para treinar. Mas logo depois do primeiro estágio, quando chegámos à casa, além de ficar num monte no meio do nada, só tinha duas camas para quatro pessoas e não tinha quaisquer condições de higiene», relata.
Porém, não foi só o local do alojamento que correu mal.
«Rapidamente deixaram também de nos pagar, a equipa não se inscrevia nas provas e o que nos salvou essa época foi termos tido o apoio da Federação Portuguesa de Ciclismo, que nos permitiu correr a Volta a Portugal», elogia.
«Mas para se perceber as condições em que o fizemos, basta dizer que tinham de ser as outras equipas a darem-nos o abastecimento porque a nossa não tinha nada», lamenta.
Apesar da péssima experiência, Amaro Antunes consegue retirar coisas positivas daquilo que viveu na equipa italiana.
«Foi uma aprendizagem importante para crescer. Guardo essas dificuldades que vivi como mais um motivo para superar noutras situações», confidencia.
Uma semana no top-10 de um Giro para onde foi… limitado
Após esse ano na equipa italiana, Amaro Antunes regressou a Portugal durante três épocas. Nesse período, representou a LA Alumínios - Antarte durante duas épocas, conseguindo dois top-10 na Volta a Portugal; e teve uma primeira passagem pela W52-FC Porto, na qual fez segundo na Volta.
Até que decidiu voltar a emigrar. Desta feita, o destino foi a equipa polaca CCC que, tendo-se tornado equipa do World Tour em 2019, lhe proporcionou uma experiência inesquecível.
«Foi uma oportunidade incrível na qual tive oportunidade de trabalhar com ferramentas que nunca tinha tido ao meu dispor. Foi uma experiência muito enriquecedora que me permitiu trazer uma bagagem cheia de ensinamentos», refere.
Nessa bagagem veio, por exemplo, uma participação no Giro de Itália na época passada. E que participação.
«O Giro marcou-me muito. Nem era para ir, porque estava a recuperar de uma rotura muscular e ainda estava a recuperar. Tinha pouca preparação, mas as coisas saíram bem na primeira semana e andei sempre no top-10, além de quase ter ganhado uma etapa em que acabei em terceiro», detalha, enaltecendo a «oportunidade incrível de fazer uma corrida de três semanas».
Quer isso dizer que no horizonte pode estar uma nova possível saída para uma equipa do World Tour?, arriscamos perguntar.
«Neste momento, não sei responder a essa questão. Tenho contrato até dezembro e teria sempre de conversar com a equipa que represento», responde.
Amaro Antunes: um nome do presente onde cabe o futuro do ciclismo
Se quanto ao seu futuro enquanto ciclista Amaro Antunes garante ter pouco a revelar, no que diz respeito ao horizonte da modalidade que o agarrou desde miúdo, o algarvio está no terreno para assegurar que será risonho.
Foi para isso e para garantir que as crianças da sua terra podiam ter uma escola onde dar as primeiras pedaladas por perto que, em 2017, fez nascer o Clube de Ciclismo Amaro Antunes. E assim tornou o seu próprio nome, além de uma certeza do presente, uma garantia de futuro do ciclismo.
«Quando eu era miúdo não tinha nenhum clube perto da minha terra e por isso tinha de ir treinar para muito longe. Isso fazia com que apenas conseguisse fazer um ou dois treinos com os meus colegas. Agora, quero dar a oportunidade aos jovens de ter um clube perto», explica.
Mas há mais uma razão que fez Amaro Antunes avançar a criação do clube com o seu nome: «ter a experiência de dirigir um clube».
Três anos após a criação da equipa de formação, são 40 os jovens que vestem a camisola do CC Amaro Antunes, aos quais se deve juntar uma equipa de masters composto por seis ciclistas.
«Honestamente, não esperava chegar a este patamar tão rápido», assume o presidente do clube, que tem como funções procurar patrocínios, além de «tentar tornar o mais profissional possível um clube que é amador».
Outra das pessoas que mais partido está a tirar da existência do CC Amaro Antunes é o pai do ciclista.
«Ele está a treinar os cadetes e juniores o que lhe permite reviver um pouco do que fez comigo», nota Amaro Antunes, também ele presença nos treinos dos miúdos de vez em quando.
«Às vezes vou fazer uns treinos junto deles porque já percebi que é algo que os motiva muito. E eu gosto de ver a alegria estampada na cara deles», admite.
Mas a quem não motivaria ter um dos melhores a treinar por perto?
«A vitória na Volta foi um misto de alegria e tristeza»
Se antes de setembro já ninguém ousaria colocar o nome de Amaro Antunes fora do lote dos melhores ciclistas portugueses da atualidade, a categoria demonstrada ao longo das nove etapas da Volta a Portugal ajudou a reforçar esse estatuto.
A profecia de Samuel Caldeira cumpria-se e o miúdo cujo pai preferia não o ver no ciclismo atingia a meta que todos os ciclistas portugueses sonham um dia alcançar.
E apesar de fazer parte de uma equipa fortíssima, com vários candidatos à vitória final, Amaro Antunes chegou à prova com vontade de fazer a diferença.
«Fui para a prova com o objetivo de discutir a Volta. Era um dos ciclistas que podia vencer e o resto fez parte da estratégia da equipa», resume.
De resto, só a W52-FC Porto vestiu de azul na edição deste ano da prova. No prólogo e na primeira etapa com o espanhol Gustavo Veloso foi o portador do símbolo de líder, e Amaro a conquistou-o na 2.ª etapa, após a vitória no Monte Farinha, na mítica subida à Senhora da Graça.
«A etapa da Senhora da Graça foi muito bem trabalhada. A tática foi bem delineada e eu até me sentiria mal se não ganhasse, depois de a equipa ter feito um trabalho soberbo», resume.
Os 13 segundos de vantagem com que ficou no final dessa segunda etapa para o mais direto perseguidor, Frederico Figueiredo foram geridos de forma perfeita pela equipa de Amaro Antunes que aproveitou o contrarrelógio final para aumentar essa diferença e assegurar o triunfo final.
«Esta vitória na Volta foi um misto de emoções. Por um lado, a alegria pela vitória num ano tão difícil, por outro, a tristeza pela falta de público. Não estávamos habituados a este cenário e foi muito estranho. O ciclismo é o desporto do povo. Os adeptos dão uma força avassaladora. É muito motivador correr com o apoio do público e nós não tivemos isso este ano», lamenta.
Ainda assim, Amaro Antunes não tem dúvidas em enaltecer os fatores positivos de se ter disputado a competição, mesmo em circunstâncias tão especiais, ideia que garante até foi partilhada por Marcelo Rebelo de Sousa, quando o ciclista foi recebido pelo Presidente da República.
«Este foi um ano marcante a todos os níveis. O ciclismo foi uma espécie de balão de oxigénio. As pessoas vinham à janela e aqueles segundos em que veem os ciclistas a passar-lhes à porta valem ouro no meio de tudo o que estamos a viver», considera.
E isso mesmo, acredita, ficou também demonstrado pela forma efusiva como o país acompanhou a epopeia de João Almeida e Rúben Guerreiro na Volta a Itália. O que considera um excelente sinal para o futuro próximo.
«O que o João Almeida está a fazer com 22 anos no Giro é inacreditável. Ele e o Rúben estão de parabéns por tudo aquilo que fizeram», elogia.
«Todas as conquistas de ciclistas portugueses são ótimas para a modalidade porque trazem visibilidade e retorno. E aquilo que eles fizeram em Itália, juntamente com o facto de se ter corrido a Volta a Portugal com recordes de audiência, garante apoios e postos de trabalho», defende.
Isto porque acredita que aquilo que a visibilidade que o ciclismo teve nas últimas semanas tenha acabado com as dúvidas que podiam existir entre patrocinadores do ciclismo.
«Não tenho dúvidas que se a Volta não se tivesse corrido, muitas equipas estariam a repensar orçamentos e algumas iriam mesmo desistir. Por isso, para nós ciclistas, isto acaba por ser também um alívio e algo que nos dá um pouco de conforto para o futuro», assume.
E por falar em futuro, em Amaro Antunes há neste momento um desejo que parece, tal como o ciclismo, vir-lhe no sangue: o de não ver a filha a enveredar pelo ciclismo.
«Bem, ela ainda só tem quatro anos, mas se um dia me disser que quer ser ciclista, vou dizer-lhe que isto é uma vida muito dura. Não estava mesmo com vontade de a ver com os braços ou os joelhos todos esfolados. Ia fazer-me andar sempre com o coração nas mãos», admite, sorridente.
Mas onde é que já ouvimos esta história?