«Vai que é tua Taffarel», gritava desde a baliza aquele rapaz escanzelado. Chamavam-lhe Tiquinho. «Porque era magrinho e alto. “Um tico de gente”, como se diz por aqui em Natal», explica João Olímpio de Lima com um acirrado sotaque do Nordeste do Brasil.
Tico, Tiquinho. Francisco Soares adotou o apodo ainda na adolescência, muito antes sequer de sonhar ser protagonista de um «fairy tale» nordestino como aquele que se concretizou na noite de sábado.
Aos 26 anos, fez história na estreia com a camisola do FC Porto ao bisar frente ao Sporting num clássico decisivo na corrida pelo título nacional.
Francisco Soares, como ecoava nos altifalantes do estádio, exibiu-se na relva do Dragão, perante 50 mil na plateia, com a mesma desenvoltura com que guardava a baliza ou jogava futevólei no campo de areia da caixa d’água, no meio da favela do bairro de Felipe Camarão e começou a dar os primeiros toques mais a sério «no FEC, do professor Rudnilson, time de bairro».
João Olímpio Lima, vizinho na Rua de Nossa Senhora do Livramento na comunidade de 60 mil habitantes da zona oeste da cidade de Natal e treinador de Soares no Centro Desportivo Felipe Camarão (CDFC), projeto social que procura combater a exclusão social através do desporto, recorda ao Maisfutebol como descobriu um potencial predador das áreas aos 13 anos:
Via-o a jogar nas areias da caixa d’água, onde os meninos jogavam sem chuteiras que as famílias não podiam tampouco comprar, nas peladinhas com os “esquecidos de tudo”, aqueles garotos que não têm oportunidade nenhuma. Dava uma de goleiro. “Vai que é tua Taffarel!”, dizia, quando agarrava a bola, mas reparei nele a jogar futevólei; tinha boa estatura, bom domínio de peito, uma cabeçada direcionada… Vai daí que o convidei a jogar pela equipa de sub-15 do CDFC, que ia disputar a Copa de Natal. Botei na cabeça dele que ia ser avançado.»
O clube comprou-lhe as primeiras chuteiras e assim nasceu um goleador. «O Tiquinho foi artilheiro da prova logo nessa edição de estreia. Apesar disso, uma tristeza: falhou a grande penalidade no desempate no jogo da meia-final em que acabámos eliminados. No ano seguinte, tinha ele já 15 anos, fi-lo jogar já na equipa de sub-17 (e não nos sub-16) e ele voltou a ser o artilheiro da Copa de Natal. Foi aí que apareceu o Palmeiras das Rocas – primeiro clube federado que representou, que por isso beneficia dos direitos de formação –, a inscrevê-lo no estadual juvenil.» E correu bem? «Nesse ano, ele foi artilheiro do estadual também…». Vinte golos.
Uma volta aos confins do Brasil antes do rumo Nacional
Não tardou a aparecer o primeiro clube grande da cidade com o primeiro contrato de profissional: Tiquinho jogou pelo América de Natal, grande rival do ABC, mas tardou em afirmar-se. «Ele entrava, ia jogando, mas os técnicos aqui no Rio Grande do Norte têm um problema: não dão o devido valor à prata da casa.»
Desse modo, a carreira do goleador foi dando a volta aos confins do Brasil, sempre por baixo: Palmeiras de Goianinha, Caico, Visão Celeste, Corinthians Alagoano, Centro Sportivo Paraibano, Botafogo da Paraíba, Sousa, da sua cidade natal, Cerâmica, Treze, Veranopolis, Pelotas e Lucena, onde foi campeão e maior goleador da segunda divisão paraíbana, há apenas três anos.
Do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, passando pela Paraíba, com o Centro Sportivo Paraíbano e o presidente Josivaldo Alves a investirem no seu passe tendo no horizonte um encaixe financeiro apetecível. Uma longa travessia até rumar a Portugal no início de 2015 para representar o Nacional. Esteve época e meia na Madeira, antes de seguir no início desta temporada para o V. Guimarães e agora ter uma estreia de sonho como reforço de inverno do FC Porto.
De Angelim a Felipe Camarão
Natal está no arranque mais a sério, mas é preciso, porém, recuar ainda mais para recordar relação inicial entre o garoto e a bola; e também girar um pouco o mapa, até ao vizinho estado da Paraíba, onde Tiquinho nasceu e viveu a primeira dúzia de anos de vida.
Nildo Lima, vizinho no bairro de Angelim, cidade do sertão paraíbano, conhece-o desde menino e recorda que os seus primeiros chutos foram na sua escolinha de futebol, hoje Centro Recreativo de Angelim, mas que nesses tempos tinha o nome de «Deus é vida». Feliz coincidência. Soares é um homem de fé – aliás, antes do apito inicial no Dragão era ele quem mais dava nas vistas com as mãos erguidas para o alto, pedindo aos céus uma graça que o jogo lhe viria a proporcionar.
O responsável pela escolinha de futebol do bairro recorda ainda uma passagem de Soares pela amadoríssima equipa do Flamengo de Hominho, mas tem na memória sobretudo o miúdo «muito habilidoso para o tamanho», «o menino obediente aos pais, que vendia picolé (gelados) no bairro durante as peladas de domingo». Uma infância vivida enfrentando as dificuldades diárias de quem nasce num meio pobre. «A mãe dele era conhecida como Corrinha, uma mulher muito guerreira, que ia até trabalhar no matadouro para ganhar o sustento dos dois filhos: o Soares e da sua única irmã, Patrícia. O pai era mais conhecido como Zé Nilton e era pedreiro», recorda Nildo, com João Olímpio a sublinhar as raízes humildes de Soares, cuja família trocou Sousa por Natal, no Rio Grande do Norte, quando ele tinha 13 anos.
A geografia mudou ligeiramente, a condição socioeconómica familiar não. Em Natal, o pai além de pedreiro «fazia biscates como carroceiro também; e a mãe ajudava-o com a carroça, a recolher latinhas e outros materiais recicláveis. A mãe é como se fosse Deus para o Tiquinho», conta Olímpio, que além de treinador da juventude é funcionário da prefeitura de Natal e trabalha no bairro onde vive como agente comunitário de saúde.
Nordeste um «tiquinho» mais azul
Para lá do futebol, recorda o «garoto brincalhão, sempre um pouco preguiçoso para estudar, mas que aproveitava cada nota que ganhava para ajudar a família». Um garoto que mantém os amigos do bairro, como Wando («eram unha e carne», conta), colega de equipa que deixou o futebol depois de um acidente de motorizada. O garoto que mesmo tendo conseguido triunfar como futebolista profissional continua a voltar de férias ao bairro de Felipe Camarão, onde ainda vivem os país e a irmã, com a mulher Ângela e a pequena filha de ambos para conviver com a vizinhança. Aproveitando ainda para espreitar o campo sem relva do CDFC, que desde 2014 está inutilizado por falta de verbas da prefeitura para intervir numa infraestrutura que serve tantas crianças e por onde já passaram uma mão cheia de jogadores que viriam a singrar no futebol brasileiro.
O Soares que regressa ao bairro Felipe Camarão em Natal é o mesmo que mantém contacto com o bairro de Angelim, o seu berço em Sousa. «Ele continua a ajudar a nossa escolinha. Em novembro, por exemplo, mandou um vídeo para motivar os nossos jovens para a Copa Paraíba. É um ídolo para eles», conta Nildo Lima, recuperando em seguida o clássico: «Fizemos uma festa enorme aqui em Sousa com esses dois golos dele no sábado. Estamos felizes pelo sucesso de um rapaz da nossa cidade, do nosso bairro... Um amigo que soube manter a humildade. Por cá, torcíamos pelo V. Guimarães, agora virou tudo adepto do FC Porto por culpa dele.»
O bairro de Felipe Camarão e até Natal inteira veste agora de azul e branco para apoiá-lo», graceja por sua vez Olímpio, que se diz nada surpreso com a estreia feliz de Soares no clássico. «Vi o jogo aqui no bairro, com os meninos do CDFC, com antigos colegas de equipa dele e acreditávamos que ele ia marcar: “Pelo menos um golo ele faz”, falávamos entre nós. Fez dois e foi uma festa.»
Festa em Sousa, festa em Natal. O filho de Corrinha e Zé Nilton é uma estrela que brilha na Europa. Naquela noite de sábado ele iluminou a constelação do Dragão.