«Pensei sempre que o futebol pudesse jogar nos regionais, mas ter a projeção que tem atualmente o atletismo nunca imaginei que fosse possível», confessa António Guita, sócio nº 1 e primeiro presidente do Clube Oriental de Pechão enaltecendo os feitos conquistados pelo atletismo do clube e nomeadamente por Ana Cabecinha, 4ª classificada nos 20 km marcha dos Campeonatos do Mundo que se realizaram no mês de Agosto, em Pequim. Neste momento, a modalidade é exclusiva no clube, movimentando mais de 100 atletas federados.

Esta coletividade de Pechão, uma freguesia do concelho de Olhão, foi fundada no dia 24 de junho de 1949 por jovens da aldeia e é a filial número 1 do Clube Oriental de Lisboa. «Éramos moços, com 16 anos, e gostávamos de jogar à bola, em Pechão, em cima das pedras. Onde houvesse um pedaço de terreno fazia-se um desafio de futebol, tivesse pedras, moitas ou outros obstáculos. Eu já estava empregado em Olhão, já era, por isso, mais graduado que os outros porque já estava na capital, e desafiei-os a formar um clube, com estatutos, porque era uma vergonha jogarmos à bola em cima das pedras», recorda António Guita.

«Não havia nome nem nada, apenas pensávamos em jogar e em empeçar [guerrear] uns com os outros. Mas tínhamos que arranjar maneira de legalizar aquilo. Naquele tempo era difícil, havia a censura que não deixava de ânimo leve formar clubes ou associações», continua o sócio fundador recuperando memórias de um tempo distante e complicado: «Por ser difícil, fomos primeiro pelo desporto porque, pelo recreativo, não havia hipótese alguma, pois eles não deixavam.»

«Pensei... e lembrei-me da pessoa que fazia a escrita da Junta de Freguesia de Pechão, o Sr. Ernesto Soares dos Santos, de quem o meu pai era muito amigo, porque o presidente da Junta... era o meu pai! E meti uma cunha ao meu pai para falar com o Sr. Ernesto. Assim foi e, quando fui falar com ele, respondeu-me: Menino, a gente vai resolver isso!».



Com a abertura dada, o passo seguinte seria arranjar um nome para o clube. «Escrevi umas cartinhas ao Benfica, ao Sporting... coisas de moços, umas escritas à mão, outras à máquina, malfeitas, mas seguiram. E a resposta foi a mesma: já temos no Algarve muitas filiais. O único que respondeu afirmativamente foi o Oriental de Lisboa, na altura na 1ª Divisão», tal como o vizinho Olhanense.

E até não tardou muito para que os moços de Pechão se encontrassem com os dirigentes do COL: «Vieram jogar a Olhão, empataram e o Olhanense desceu de divisão com esse empate. Fizemos-lhes uma receção - só os moços - dizendo-lhes que tínhamos sido nós que escrevemos a carta. Nesse dia trouxeram-nos uns equipamentos», lembra António Guita. Os lisboetas também não regressaram a casa de mãos vazias e receberam em troca figos e amêndoas do Algarve.

«Conseguimos legalizar o clube, mas não fomos nós que assinámos os papéis porque naquele tempo não tínhamos idade para isso. Assinou o meu pai e os outros membros da Junta de Freguesia, como o Francisco Marques, o Sebastião Brito do Vale e o Teófilo de Sousa, entre outros. Até o Francisco Guerreiro, que era contra a situação, assinou. Eles é que são os verdadeiros fundadores do clube. Nós, os moços, estávamos na retaguarda. Além do mais, eles é que eram da situação, a malta nova queria lá saber do Salazar para alguma coisa...»

«Nós queríamos era jogar à bola», conta enquanto recupera um episódio desses tempos: «Eles só se meteram connosco quando fizemos um teatro com os jograis António Aleixo, de Loulé, e o ensaiador era o Sr. Francisco Guerreiro, [o tal] homem contra a situação apesar de ter sido secretário da Junta. Fizemos a peça, eu também entrei e levei umas moças de Olhão para ajudar. Chegou lá a GNR, bateram à porta e disse-lhes que eu, o meu pai e a Junta de Freguesia nos responsabilizávamos por aquilo. Foram-se embora.»

Os jogos, com o Moncarapacho, o Estoi, o Fuseta e alguns clubes populares de Olhão eram renhidos e obrigavam o clube a reforçar-se com jogadores do Olhanense. «Para ganharmos a esses clubes, pagávamos a jogadores das reservas do Olhanense para jogarem por nós», reconhece António Guita, porque a qualidade dos jogadores da terra era bem inferior à vontade de jogar.



«Só tínhamos futebol, mas não ficámos por aí. Fomos novamente bater à porta do Sr. Ernesto porque precisávamos de uma sede para fazer teatro e outras atividades. Deixa estar que eu trato disso, respondeu-me», surgindo pouco depois a primeira sede, junto à igreja, e que serviu para realizar «bailes e outras coisas que interessavam, porque deixavam algum dinheirinho para o clube». «

Os sócios pagavam 25 tostões por mês, o dinheiro apurado servia para comprar equipamentos. As bolas e as botas alugávamos ao Vidal, do Olhanense. Mas a nossa jogada não era desportiva, era mais recreativa porque Pechão não tinha nada», revive António Guita.

Vladimiro Sousa é o atual presidente do COP e já leva nove anos consecutivos de ligação ao clube como presidente da direção, tesoureiro e presidente da assembleia geral, cargo que ocupou até maio, quando voltou à presidência da direção.

«Temos cerca de 200 associados e sobrevivemos com o apoio e o esforço dos diretores e dos carolas do clube. Organizamos bailes, festas e iniciativas para amealhar algum dinheiro e também temos estabelecido contratos-programa de apoio ao desporto com a Câmara Municipal de Olhão. Também contamos com um patrocinador, a Lusitânia Seguros. Mas também temos uma grande dedicação e vontade em pôr esta inúmera gente a praticar desporto», revela sobre como consegue a sua direção manter o clube em funcionamento.

Os cerca de 200 sócios do COP pagam uma quota de 1,5€ por mês entre os adultos e 1€ entre as crianças.



«Nos últimos anos, tivemos um período em que também tínhamos futsal, com uma equipa jovem e outra sénior. Infelizmente, não dá para tudo e tivemos de repensar: talvez seja melhor sermos menos ecléticos e fazer bem aquilo que sabemos fazer bem. Esse é o nosso lema atual. Se temos tantos atletas de valia no atletismo, é sinal de que o nosso trabalho é reconhecido. E, assim, estamos focados na modalidade e não nos dispersamos com outras, que só nos roubam recursos e tempo», defende Vladimiro Sousa sobre aa opção do atletismo como modalidade desportiva única no clube.

O lado recreativo e social do COP ainda se mantém, mas não com a mesma dinâmica de outrora: «Os tempos são diferentes... Há meia dúzia de anos tínhamos um rancho folclórico, há dois anos tínhamos um grupo de teatro, mas que agora está um pouco desativado. Continuamos a organizar o Festival do Folar, os famosos bailes de Carnaval, além de outras iniciativas em conjunto com a Junta de Freguesia.»

Ana Cabecinha, 4ª classificada nos 20 km marcha nos Campeonatos do Mundo de atletismo realizados em Pequim, em agosto passado, é a grande referência desportiva do clube. «A minha história passa toda pelo Clube Oriental de Pechão. Comecei em 1996 e em janeiro faço 20 anos de ligação ao clube.

O COP significa tudo: foi aqui que cresci como atleta e como mulher», reconhece a tetracampeã nacional, que recorda como tudo começou: «O culpado foi o meu cunhado Valter, que era um dos treinadores. Tive um grave acidente em que parti a perna ao cair de uma ponte e ele levou-me para o atletismo porque tinha a perna deformada e tinha que fazer exercício físico. Esse era o único objetivo, nunca pensei em ser filiada. Nunca sonhei em vir a ser a atleta que sou hoje. Se naquela altura me dissessem que iria ser uma atleta de elite iria rir-me. Era uma criança, queria era brincar, a minha ideia era brincadeira e viajar.»

«Não tínhamos estas instalações, equipávamo-nos dentro das carrinhas, por isso dou muito valor ao pouco que temos hoje. Somos cada vez mais e precisamos de melhores instalações.», continua a atleta. Os títulos e medalhas de Ana Cabecinha têm gerado cobiça dos grandes clubes nacionais, mas a todos a atleta tem dado nega. E, à MF Total, explica porquê: «Tive convites do Porto - quando era júnior -, do Sporting e do Benfica. O que me faz ficar por cá é o carinho que continuo a ter do clube, da Freguesia e da Câmara. Além disso, a minha transferência é cara e nenhum clube neste momento está para pagar esse valor.»



No atletismo, o mentor de Ana Cabecinha é Paulo Murta, o coordenador da seção no clube. «Começámos com o atletismo em 1978, pela mão do Zeca (Custódio Moreno) e o clube foi sempre muito forte na modalidade desde os anos oitenta. Em 1985, depois de ter representado o Olhanense e o Louletano, vim para Pechão como atleta e, passados dois ou três, anos o Zeca pôs-me a orientar os mais novos. Depois, ele saiu para a política e fiquei eu a coordenar a secção. Somos melhores em femininos, mas, ironicamente, o primeiro título coletivo que tivemos foi em masculinos: o de campeão da 2ª Divisão, em 1994», conta Paulo Murta.

Em Pechão, a marcha é a disciplina em destaque: «Tem muito a ver com os primeiros marchadores. Em 1995, 96 e 97 apareceu uma fornada muito boa, entre os quais a Ana Cabecinha, mas também o Cláudio Estrela, que foi internacional e o Mário Madeira, que foi campeão nacional, entre outros.» «Havendo uma atleta de referência, como a Ana, os mais novos também desejam tentar chegar onde ela chegou», justifica.

Antes de Ana Cabecinha, o concelho de Olhão também esteve representado na disciplina nos Jogos Olímpicos de Seul (em 1988) por Hélder Oliveira (nos 20 km) e nos de Atenas (em 2004), com Jorge Costa (nos 50 km).

«A marcha e, nomeadamente a feminina, tem-nos dado bons resultados, primeiro a nível nacional, com vários títulos nos diversos escalões, e agora, também, no plano internacional. Na última época tivemos quatro atletas internacionais: a Ana Cabecinha em duas competições (na Taça da Europa e no Campeonato do Mundo); duas juniores: a Edna Barros e a Catarina Marques (na Taça da Europa e no Campeonato da Europa); e uma juvenil no Campeonato do Mundo: Carolina Costa, filha do olímpico Jorge Costa). Todos estes atletas estão no PAR [Programa Alto Rendimento]», refere Paulo Murta acrescentando ainda mais duas atletas que em 2015 representaram as seleções nacionais: «A Marta Vargues, no salto em altura, que se transferiu agora para o Benfica, esteve nos Mundiais escolares e a Fatoumatta Diallo esteve nos 400 metros do Festival Olímpico da Juventude.»



As condições de treino poderiam ser melhores, mas tal não impede que se efetue um trabalho válido: «É o que temos… Um polidesportivo em cimento e um campo de futebol em terra batida. A partir de janeiro vamos uma vez por semana à pista, com a casa às costas.» «Temos resultados na corrida e na marcha porque são provas em linha e não exigem grandes instalações, vamos treinar para a rua. Nas [disciplinas] técnicas, com muito trabalho e adaptação, também já vão aparecendo resultados. Mas só agora é que temos uma caixa de salto em comprimento. Não podemos fazer trabalho de velocidade nem de barreiras digno, os lançamentos são reduzidos.»

«Fomos campeões femininos da 3ª Divisão em 2012 e 2013; em 2014, fomos sextos [classificados] e, no ano passado, quintos. E o campeonato de equipas envolve todas as disciplinas», valoriza Paulo Murta, com resultados, o trabalho que é efetuado sem as condições adequadas.

No último campeonato nacional de marcha realizado em abril, em Rio Maior, o COP conquistou quatro títulos individuais e três coletivos sendo ainda o clube que mais atletas apresentou (17) na competição. Além de Ana Cabecinha, em seniores femininos (20 km), a prova de juniores femininos (10 km) foi amplamente dominada pelas atletas do COP, que ocuparam as três posições do pódio: Edna Barros (1ª), Catarina Marques (2ª) e Laura Leal (3ª). Rodrigo Marques venceu em juvenis masculinos (10 km) e Carolina Costa conquistou o seu 2º título consecutivo em juvenis femininos (5 km).

«Facilmente ultrapassamos a centena de atletas federados. Só em 1998 não chegámos a esse número. E temos mais 25 ou 30 não federados. Somos dos poucos clubes em Portugal que trabalhamos desde a formação até à alta competição. Os grandes clubes trabalham, essencialmente, de juvenis para cima, não pegam nos benjamins e infantis», refere Paulo Murta, que conta com a ajuda de mais quatro treinadores - Jorge Costa, Paulo Castro, David Brás e Ricardo Nicolau - para orientar os atletas que vão desde os benjamins até aos veteranos: «Temos atletas desde os 6 aos 60 anos!»



«Dá-me um gozo tremendo pegar num jovem com 6 anos, como aconteceu com a Ana Cabecinha, e levá-la aos Jogos Olímpicos», congratula-se Paulo Murta, que desde 1998 apoia tecnicamente a Federação Portuguesa de Atletismo nas grandes competições internacionais. O treinador do COP já esteve presente em três Jogos Olímpicos.

«No primeiro, em Atenas 2004, tinha o Jorge Costa, em Pequim 2008, além da Ana, orientei dois atletas brasileiros e uma lituana que representava o clube. E em Londres 2012 estive com a Ana Cabecinha.»

Em Pequim, Ana Cabecinha foi 8ª e bateu (com o tempo de 1:27:46 horas) o record nacional nos 20 km marcha, que ainda perdura. Em Londres, a atleta do COP foi 9ª classificada. Nos Campeonatos do Mundo, foi 7ª em Daegu (2011), 8ª em Moscovo (2013) e 4ª em Pequim (2015). «Nos últimos cinco anos, só uma vez [Ana Cabecinha] não ficou no top ten. Foi 13ª em Olhão, em 2011, na Taça da Europa», enaltece Paulo Murta.

Perante estes resultados, o treinador acredita que uma medalha numa grande competição poderá ser uma realidade. «A medalha nuns Jogos Olímpicos ou em qualquer campeonato é o dia, o momento. Eu acredito que [Ana Cabecinha] tem potencial para ganhar uma medalha. Neste momento, no mundo, ela só não ganhou a uma atleta, a chinesa (Hong Liu), campeã do mundo. Para os jogos do Rio de Janeiro já está pré-selecionada, o que nos permite trabalhar com mais tranquilidade e focados no objetivo.»

«A Ana é a nossa referência máxima e que, volta e meia, faz-me chorar por bons motivos. E isso tem acontecido muitas vezes nos últimos anos. É uma atleta de competição, mas que tem uma humildade extrema e que se sacrifica em prol da equipa», reforça o presidente Vladimiro Sousa.