Não fosse uma história de amor, trágica, e é muito provável que o Grupo Dramático Ramiro José tivesse hoje outro nome. Mas reza a lenda que foi assim que aconteceu. Tendo tudo começado com o Grupo Dramático Os Macavencos.

[«Macavenco»: substantivo e adjetivo masculino com os significados de «esquisito», «indivíduo excêntrico», in «Dicionário Priberam da Língua Portuguesa».]

E foi na excentricidade dos denominados «loucos anos 20» (do século passado) que o Grupo Dramático Os Macavencos se formou em Lisboa.


Apenas se sabe identificar, na fila dos que estão em pé, Severino Joaquim (segundo a contar da esquerda) e Ramiro José (segundo a contar da direita) ao lado da sua irmã

A fotografia de 1920 mostra o corpo cénico e a direção da trupe que se formou para abraçar o teatro e o jazz na mítica década da folia. Mas, Macavenkos, já havia outros – uma sociedade privada lisboeta formada por homens que «gostavam de petiscar na mesa e na cama» (como historiou o jornal «Expresso»).

E, mesmo sendo Macavenkos com «k», não deixaram que houvesse outros. O Grupo Dramático Os Macavencos não continuou como tal. E ficou a chamar-se Grupo Dramático Ramiro José em homenagem a um dos seus fundadores. O único que já tinha morrido nessa altura da refundação. E – de volta à lenda – que morreu por desgosto de amor.

É por isso que o estandarte do clube nos explica que o Ramiro José se mostra até hoje «reorganisado em 25-10-1923» sob o nome do que já tinha falecido daqueles 13 amantes das artes dramáticas e musicais.



Da história e da lenda até à realidade dos dias de hoje já passaram mais de 90 anos. E são múltiplas as faces deste clube que tem uma caraça das artes dramáticas no seu símbolo; assim como são também várias as vidas que a coletividade das Avenidas Novas lisboetas já viveu: três vidas, mais precisamente.

Nascido no nº107 da Travessa Henrique Cardoso num edifício já então conhecido como «Ferro de Engomar», o a partir de 1923 Ramiro José alargou-se das artes para o desporto e, sobretudo, para a vivência dos clubes típicos de Lisboa do século XX, com expoente nas décadas de 60, 70 e 80.

Foram as décadas em que as coletividades eram verdadeiras agregadoras das pessoas dos seus bairros – como as casas dos concelhos agregavam os seus naturais que procuravam outra vida na capital portuguesa. E assim o fizeram as coletividades também em relação aos jovens dos seus bairros na prática do desporto.



Cumprindo (mais do que uma função social) esta forma de existir de então, onde os pais tinham os filhos, o Ramiro José foi um dos tais típicos clubes de Lisboa que viu a chegada dos títulos nacionais no ténis de mesa (de que são exemplos as vitórias em 84/85 por equipas femininas e masculinas, no seguimento dos frutos que deu a formação do clube) – numa das modalidades que se mantém no presente.

E foi também por esses anos que as damas entraram como desporto no Ramiro José, com o êxito que mais tarde se verá. O ballet, o karaté, o futsal (de formação e sénior, com troféus distritais), o andebol em ringue eram outras das modalidades que o clube praticava até ser «abruptamente interrompido nas suas funções», como recorda para o Maisfutebol Miguel Pereira, o atual presidente.

O anúncio da expropriação e demolição do «Edifício Ferro de Engomar» para a quadruplicação da Linha de Cintura de Lisboa determinou o fim da primeira vida do Ramiro José. O comboio que passa em Entrecampos trespassou o clube em pontos vitais obrigando-o a uma nova vida em barracões, um pouco mais à frente da demolida sede, no local onde era o campo de jogos.



Esta foi a casa do Ramiro José entre 2000 e 2008. O clube lisboeta quase morreu de vez com a evolução da cidade. «Os sócios viveram esta mudança com muita angústia, com muita preocupação. Muitos temeram o fim do clube», conta Miguel Pereira. Esta coletividade tinha mais de 500 sócios até à demolição da sua sede. Em 2008, ficou reduzido a cerca de 100 associados.

Naqueles barracões, naqueles oito anos, pouco mais foi havendo do que a sala da direção, a mesa de snooker (que ainda é a mesma da atual sede), espaço para a prática das damas e, claro, o bar – a única fonte de receita do clube nesse período, pois, como se viu, a quotização era muito reduzida. O que havia mais para além disto era a dedicação dos mais resistentes, dos dirigentes, do presidente na altura, Mário da Costa Patrício.

Foi «a persistência dos dirigentes» que manteve o Ramiro José na sua segunda vida, reforça Miguel Pereira, presente na direção desde 1997. O atual líder do clube não deixa de lembrar o papel que teve o seu antecessor – presidente honorário do Ramiro José, que foi também secretário-geral da Federação Portuguesa de Ténis de Mesa – e que foi quem negociou com a Câmara Municipal de Lisboa o renascimento para a terceira vida.

Do lado de lá da linha de comboio, o Ramiro José foi-se esvaindo enquanto ficou pelos barracões. Sempre foram oito anos. E todo o processo de mudança que começou com a demolição da sede deixou as suas marcas. Este «era um clube da zona envolvente do Bairro de São Miguel», na freguesia de Alvalade. «Apesar de andar 200 metros para a frente perdeu a envolvência. Muita gente não sabe onde é agora. Passaram-nos para cá da linha férrea, tiraram-nos gente.»



Terceira vida, uma nova realidade. «Trouxemos outros para cá», esclarece o presidente da coletividade. O lado de cá da Linha de Cintura de Lisboa, perto do apeadeiro da Av. Roma, nasceu no edifício onde está também a Junta de Freguesia (agora) do Areeiro (antes de São João de Deus). «Em 2008 recebemos esta sede por compensação da outra. Mais tarde, foi o campo de jogos e começámos aqui de novo. Começou-se tudo de novo.»

A nova realidade do Ramiro José não deixa de se fazer no bairro onde está. Mas alarga-se para além dele. «Em 2008 começámos de novo, olhámos para as instalações que tínhamos e vimos como tínhamos de ser um clube virado para Lisboa. Somos um clube de bairro virado para a cidade», assume o presidente do Ramiro José desde esse ano e liderando atualmente uma equipa de sete elementos. Nesta nova casa, os responsáveis pelo clube decidiram fazer um ginásio de musculação e cardiofitness e criar o que «teve procura», como o karaté, o pilates e o ballet. Para estar inscrito em qualquer uma destas atividades «todos têm de ser sócios».

As quotas são de 2,50€ e de 1,25€ para quem tem entre os 15 e os 18 anos. Desde 2008 para cá, o clube já tem cerca de 1.500 sócios e «todos os anos têm vindo a aumentar». «Os sócios são utilizadores das instalações desportivas e há uma flutuação muito grande», explica Miguel Pereira fazendo uma revelação: «Há sócios do país todo, até sócios estrangeiros, que ficam hospedados no Hotel Roma [mesmo em frente] e vêm ao nosso ginásio.»

O lado de cá viu nascer o xadrez como modalidade desportiva no Ramiro José – já com um título nacional (Tiago Prazeres) – e do lado de lá vieram as damas, o ténis de mesa – que vai somando títulos no campeonato do Inatel – e o futsal masculino, que sobreviveu até 2010. A modalidade ainda se conseguiu manter (com ajuda da Câmara Municipal) mesmo sem campo próprio até essa altura, mas «os custos de 30 mil euros/ano tornaram-se incomportáveis». Marco Ferreira, antigo jogador do Ramiro José, lembrou-nos que, a certa altura, se torna também impossível competir com os clubes que passam a fazer grandes investimentos em equipas para ter os melhores jogadores.



De há dois anos para cá, o Ramiro José voltou a fazer uma aposta no futsal, mas, desta vez, no feminino. Marco Ferreira não só é um antigo atleta como é o treinador responsável pelo ginásio de musculação e cardiofitness – de manhã à noite todos os dias úteis e ainda aos sábados de manhã. Além de ser membro da direção com a responsabilidade desportiva. Por isso, é ele quem nos revela que o objetivo do Ramiro José é ter a sua equipa feminina de futsal já federada a competir na 3ª Divisão no próximo ano.

Por enquanto, o Ramiro José vai participando na liga feminina Linksport. Rui Santos é o treinador deste grupo de 13 jogadoras. E são várias as vezes em que se debate com ausências nos treinos de mulheres que jogam por gosto, mas nem sempre podem. «Duas ou três são mães e para virem treinar à noite têm de pedir muitas vezes aos seus pais ou aos maridos para ficarem com os filhos», conta-nos. Outras jogadoras faltam às vezes por razões de trabalho. Mas quando podem vão até à Av. Roma, até ao campo que neste caso deixou o Ramiro José por cima da linha de comboio; vão as que moram em Sintra, em Sacavém, as que moram na margem sul do Tejo «e que ficam até às onze e meia da noite antes de voltarem para casa».

As damas que se fortaleceram nos barracões

O sábado no Ramiro José é dedicado ao xadrez e às damas; de manhã os mais novos vão aprendendo e evoluindo as movimentações de peões e outros. À tarde, os mais velhos tentam encontrar o que ainda não foi descoberto no ziguezaguear das pedras. Foi na sala dedicada aos jogos de tabuleiro que encontrámos vários jogadores que contribuíram para o palmarés dourado do clube no plano nacional.

Nuno Vieira é o mais novo dos que estão a jogar. Há dois anos seguidos detém o título de campeão nacional de damas portuguesas rápidas (partidas de meia hora de duração). Nuno Vieira (com mais duas Taças de Portugal pelo Ramiro José) defronta Jorge Gomes Fernandes – decano da modalidade no nosso país e também com títulos nacionais –, considerado «o maior problemista português de todos os tempos», como frisa o atual bicampeão português de rápidas.

A observar as jogadas daqueles dois respeitados jogadores está outro não menos conhecido na modalidade: Leopoldo Lopes. Um pouco depois, forma-se um quarteto à volta da mesa com a chegada de Fernando Pinto, o atual capitão de equipa. Só ele ganhou sete títulos nacionais por equipas com o Ramiro José. E é ele também que nos conta que Leopoldo Lopes ganhou cinco Taças de Portugal pelo clube, depois de ser um dos responsáveis pela criação da secção de damas, a meio da década de 1980.

Fernando Pinto assinala que «foi quando o Ramiro José esteve nos barracões que a secção de damas disparou». Foi também nessa altura (há cerca de 10 anos) que Nuno Vieira chegou ao clube. Estavam a formar-se as condições para assaltar o trono situado na margem sul. « Vamos formar uma equipa para bater o Almada, foi o que nós decidimos», recorda o capitão da equipa. E conseguiram. O Ramiro José foi colecionando títulos como o último campeonato nacional de rápidas por equipas.


Na mesa junto à janela estão reunidos muitos títulos do Ramiro José com Leopoldo Lopes, Nuno Vieira, Jorge Gomes Fernandes e Fernando Pinto

O Ramiro José vai-se fortalecendo na sua nova morada, na sua nova vida. E, claro, sem ninguém se esquecer de um dos alicerces da sua fundação: o teatro. É no edifício da Rua João Villarett que junta de freguesia e clube dividem que está também o auditório partilhado por ambos. A sala tem o nome do ator José Melchior dos Reis, o sócio nº1 do Ramiro José. Num espaço com capacidade para até 80 pessoas, o também grupo dramático realiza em média três peças em nome próprio por ano; mas também cede o espaço a outras companhias. A atual trupe do Ramiro José é dirigida por uma atriz profissional, mas o grupo de teatro é amador.

Também neste ponto, Miguel Pereira lembra que na primeira vida do clube havia «uma sala completamente equipada» e que, também neste caso, foi preciso «voltar a começar do zero», pois a vida dos barracões deixou muito para recuperar. Em 2001, por exemplo, o Ramiro José «movimentava 27 mil euros». «Hoje, o clube movimenta 100 mil euros», revela o presidente dando como exemplo que, «só de manutenção» da sua parte do edifício, o clube gasta «cinco mil euros» por mês.

Apenas com «apoio logístico» da junta e dos programas para as coletividades da Câmara, o Ramiro José partilha sócios (mais velhos) frequentadores das atividades (como aulas de pintura, por exemplo) da entidade geminada. E o clube ainda conseguiu manter alguns sócios do lado de lá. «Acabámos por trazer uns 20 ou 30, os que moram mais perto». Mas a vida passada no clube vai mudando. E terminando mais cedo no dia.

Antes de 2000, o Ramiro José fechava as portas à meia-noite. Agora fecha às 22h00. Ainda se joga nas salas, os que vivem o clube desde a sua primeira vida ainda se mantêm ao seu lado. Mas quando vão buscar os netos à escola, depois, já vão para casa. Os receios dos dias de hoje muitas vezes a isso obrigam… As realidades são outras... Como nos diz Miguel Pereira em relação à norma: «Hoje, as pessoas vêm fazer uma hora de ginásio e vão embora.» E o Ramiro José já se vai habituando a esta nova vida…