"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.

Kiko Rodrigues, 25 anos, Beira-Mar

«A minha ligação ao futebol começou quando era miúdo. Já tinha o vício de andar sempre com uma bola e o meu pai levou-me para o Taboeira. Não tenho bem a certeza, mas acho que comecei a jogar nas escolinhas. O Taboeira organizava torneios, nos quais o Benfica também ia. Fui chamado a fazer captações, gostaram e fiquei. Isto aos oito ou nove anos.

No início, para aí nos primeiros três anos, treinava duas vezes em Lisboa e outras duas no Taboeira. Depois ao fim de semana ia jogar a Lisboa. A partir dos infantis, penso, foi criada a escola de futebol do Benfica em Aveiro e comecei a repartir os treinos entre Aveiro e Lisboa. Só aos 12 anos é que me mudei para o Seixal.

Arquivo pessoal

Mesmo com as viagens, eu andava sempre contente. Era eu e o meu pai, mas íamos juntos com o João Carvalho [agora no Estoril] e também o pai dele. E ainda havia outro colega que também ia, o Bruno, tal como o pai. Os nossos pais criaram uma boa amizade e para nós era uma alegria, para jogar futebol não havia problema.

Ainda hoje tenho contacto com o João Carvalho, seguimos caminhos diferentes, mas a amizade fica sempre. Conversamos de vez em quando e às vezes estamos juntos. Mesmo com os restantes colegas dessa altura sempre tive uma boa relação, vamos falando e estamos a par do que está a acontecer.

Sobre a adaptação ao Seixal: vou ser sincero, de início claro que é sempre difícil, mas fomos numa altura em que não havia aulas, por isso passávamos o dia no centro de estágios. Tinha muitos colegas da minha idade e à tarde treinávamos, por isso não senti logo o peso da mudança e de estar longe da família. Mais tarde com a idade é que começou a pesar, com outra maturidade.

No Seixal tínhamos noção que a nossa geração era especial, desde a altura em que começou a haver chamadas a Seleção, recordo-me que por vezes iam 12 jogadores da nossa equipa. E mesmo os nossos treinadores diziam-nos.

Não me recordo de nenhum jogador que se destacasse na altura e que tenha acabado por ter uma carreira abaixo das expectativas, tanto que a maior parte está toda a jogar em clubes de primeira divisão, está a ter uma boa carreira. Um ou outro foi ficando pelo caminho, mas isso é natural.

Por exemplo, o Renato Sanches. Lembro-me que disparou a partir dos iniciados e começou a notar-se que era diferente. Nessa altura já era o que é hoje, muito explosivo e forte tecnicamente. Não me surpreendeu a ascensão rápida que teve na equipa principal do Benfica.

E o Rúben Dias, que sempre foi um capitão no verdadeiro sentido da palavra. Sempre muito comunicativo, muito responsável, trabalhador. Isso tudo aliado fez com que chegasse ao que é hoje. Chegar ao Manchester City e ser capitão não é para todos, não é preciso só parecer, é uma coisa mesmo dele e ele já era assim desde novo.

Nesse período, o treinador que mais me marcou foi o Luís Nascimento, o irmão do Bruno Lage. Treinou-me dois ou três anos e gostava muito dele. Mas todos foram importantes, mesmo no Vitória de Guimarães.

Arquivo pessoal

Para terminar essa etapa no Benfica, posso contar uma história engraçada: nós tínhamos uma alimentação muito regrada, nem podíamos ter bolachas no quarto. E houve uma altura em que decidimos fazer um assalto à cantina, à despensa, onde havia Chocapic [cereais] e essas coisas. Esperámos pela noite e tirámos à sorte para ver quem ia à frente, em segundo e por aí fora. Tapámos as caras com cachecóis e óculos de sol e lá fomos nós. Só que há seguranças e câmaras por todo o lado e tivemos problemas, fomos apanhados. Na altura fomos falar com o diretor da formação e ele deu-nos um ralhete. Era a rebeldia normal da idade, não era por termos fome. O nosso castigo foi escrevermos durante uma semana, numa folha, que não íamos voltar a roubar comida. Os nossos pais vieram a saber isso, fizeram o trabalho deles, mas agora até se riem. E depois ainda tivemos de afixar essas folhas no balneário.

Após o Benfica, surgiu a mudança para o Vitória de Guimarães. Na altura, no final da época 2013/14, o Senhor Armando Carneiro, diretor da formação do Benfica, disse-me que o clube queria que eu fosse emprestado no meu primeiro ano de junior ao Casa Pia, como por exemplo o Ferro foi. Mas o meu empresário falou-me do interesse do Vitória e quis começar de novo, no clube que achei que era o certo. Estava um pouco mais perto de casa, adaptei-me bem. Apanhei um bom grupo, foi tranquilo.

A caminhada até à equipa principal foi natural. Fiz os dois anos de juniores, e o primeiro ano de sénior, já como profissional, correu muito bem na equipa B, na II Liga. No final dessa temporada, 2016/17, o mister Pedro Martins disse-me que ia contar comigo, ia começar a treinar na equipa principal, e ia ver se ficava ou não. O mister Pedro gostou de mim e fiquei no plantel. Depois a partir daí só tinha de lutar pelo meu espaço.

Kiko Rodrigues a disputar um lance com Danilo num FC Porto-Vitória de Guimarães (arquivo pessoal)

Claro que o mister Pedro Martins é especial para mim, foi com ele que fiz a estreia na Liga, joguei também na Liga Europa e ajudou-me bastante. Cresci muito com ele, foi-me sempre ajudando, ele e a equipa técnica. Vou sempre recordá-lo como uma pessoa que me ajudou.

Na segunda metade dessa época, em 17/18, não estava a ter minutos e foi o próprio Pedro Martins que falou comigo para regressar à equipa B. Precisava de ter tempo de jogo para continuar a evoluir.

No verão de 2018, estava de férias e o meu empresário ligou-me a dizer que o Estoril estava interessado. Falei com o Pedro Alves [diretor-desportivo], com o Luís Freire, treinador na altura, e senti que me queriam mesmo e que era um bom projeto, para tentar a subida de divisão. Aceitei ir, achava que ia ter muito tempo de jogo e que ia ser importante. Só que sofri uma rotura de ligamentos no joelho logo no segundo treino, se bem me recordo, e estive praticamente a época toda sem jogar. Foi muito difícil, as lesões nunca são boas, muito menos quando são graves. Ainda por cima tinha acabado de mudar de clube e aconteceu isso, só tornou as coisas piores.

Voltei ao Vitória, comecei na equipa B, com o mister Alex, e num jogo de pré-época voltei a ter outra lesão grave no joelho, novamente uma rotura de ligamentos. Isso dificultou-me e atrasou-me um pouco a carreira. Ambas aconteceram num momento em que estava a começar a afirmar-me e foi como se tivesse de começar de novo. Estive muito tempo parado e foi muito complicado voltar a ganhar confiança.

Depois dessas duas lesões, precisava de tempo do jogo. Da parte do Vitória, sentia que não contavam muito comigo, o Felgueiras era a equipa do meu empresário e acabou por ser um passo natural, para jogar e ganhar confiança.

Kiko Rodrigues ao serviço do Felgueiras (arquivo pessoal)

Apanhei um bom grupo nos dois anos e principalmente o segundo ano correu muito bem, conseguimos ir à fase de subida. Mas tinha o desejo de estar mais perto de casa, já estava há muito tempo sem estar junto da família e queria vir para ao pé de casa, para ter mais estabilidade. Surgiu o Beira-Mar e fiquei muito contente. É especial, é como defendermos o nosso clube e a nossa cidade.

Para já consigo viver só do futebol, mas fui preparando a minha vida fora do futebol. Estudei e tirei a licenciatura em desporto, em 2022. No fundo fui investindo para o dia em que deixe de jogar. Sempre fui bom aluno e os meus pais incentivaram-me a continuar a estudar. Não havia outro curso que me interessasse a não ser desporto, e estou também a pensar em tirar os cursos de treinador, vou querer continuar ligado ao futebol quando deixar de jogar. Mas mais para a frente começo a pensar nisso.

Ainda sobre o Beira-Mar, acho que a curto/médio prazo podemos regressar aos campeonatos profissionais. O clube está muito bem em termos de instalações e de estrutura, bem cimentado. Acho que tem todas as bases para continuar a crescer e a chegar ao nível que o Beira-Mar merece. Além disso tem uma grande massa adepta que apoia e impulsiona o clube.

Arquivo pessoal

Representei a Seleção Nacional na formação várias vezes, e foi sempre um orgulho. Há sempre aquele ‘friozinho’ na barriga ao ouvir o hino antes dos jogos. Comecei a ir quando fui para o Vitória e gostava muito, reencontrava os meus antigos colegas do Benfica. Eram momentos felizes e um prémio pela boa prestação que tinha no clube.

Ao longo da minha carreira joguei com muitos jogadores talentosos e é difícil estar a evidenciar algum. Mas costumo dizer, mesmo quando os meus amigos me perguntam quem foi o melhor jogador com quem joguei, que gostei muito de jogar com o Joseph [Amoah] no meio-campo do Vitória, fazíamos uma boa dupla e ele ajudou-me muito. Gosto sempre de o lembrar por causa disso.

Ainda sobre as minhas lesões no joelho, não vou mentir, de vez em quando penso o que seria se não as tivesse tido. Mas aceito, sempre aceitei, foram duas adversidades e acima de tudo estou orgulhoso por as ter ultrapassado. Já não olho para trás, só para a frente. Dou o meu melhor, sempre com a ambição de um dia conseguir voltar a estar nos patamares onde já estive.»