"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.

João Godinho, 37 anos, guarda-redes do Real Sport Clube.

«Este ano estou no Real e treinamos de manhã, habitualmente. Tenho uma filha de 11 anos, e por vezes sou eu a levá-la à escola, outras vezes é a minha namorada. Depois vou com mais três colegas para o treino. Temos de estar no clube entre as 8h30 e as 9h. Por norma almoço em casa. Por vezes tenho também de ir buscar a minha filha da parte da tarde, mas entre as 17 e as 20 horas estou no Sacavenense, onde sou coordenador e treinador de guarda-redes das camadas jovens. Já estou ali há sete anos, um bocadinho a preparar o futuro. Para estar preparado para aquilo que quero fazer, que é ser treinador de guarda-redes.

Pelo meio ainda trato de encomendas e outros assuntos da marca de luvas que tenho, a Brumi GK. É algo que começou há oito ou nove anos. Foi criada por um amigo, e eu fui ajudando, e mais tarde acabei por chegar a acordo para ficar com a marca, até porque esse amigo já não tinha muita disponibilidade. Todos os anos faço um evento, no verão, uma batalha de guarda-redes. Inscreve-se quem quiser, dos traquinas aos juniores, e depois é dividido por escalões. São duelos um contra um, que duram um minuto, a rematar e a defender. Nos últimos anos não consegui fazer por causa da pandemia de covid-19, mas na última edição tive 150 inscritos.

Comecei a jogar no Benfica, aos 10 anos. O meu pai tinha sido guarda-redes no Santa Iria, e eu já fazia umas brincadeiras com ele, mais direcionado para essa posição. Depois ele tornou-se treinador de guarda-redes, e uma vez fizeram um jogo com o Benfica e o guarda-redes foi convidado a ir lá treinar. Esse rapaz, que era mais velho do que eu, não tinha cá os pais, vivia com os avós, e pediu ao meu pai para ir lá com ele. Eu fui também, e acabei por treinar. O treinador era o José Morais. Fizemos dois ou três treinos e eu acabei por ficar, e o outro rapaz não.

João Godinho no Benfica (Arquivo Pessoal)

Foi no Benfica que criei a amizade que tenho, ainda hoje, com o João Pereira. Já o tinha conhecido na seleção de Lisboa, quando ele ainda estava no Domingos Sávio, mas depois fizemos a formação toda juntos no Benfica. Considero-o um irmão, e ele pensa o mesmo relativamente a mim.

A melhor história que tenho com o João foi uma vez que ele foi convocado para os juniores, quando era ainda juvenil. Ele não tinha feito qualquer treino, e essa equipa de juniores tinha um código para os livres laterais defensivos: o sinal era alguém dizer “olha o 10”, e toda a gente subia para deixar os adversários fora de jogo. O João não sabia de nada, e quando ouviu “olha o 10” começou à procura do jogador que tinha esse número e ficou no mesmo sítio, deixando os adversários em jogo. Foi muito engraçado.

Nessa altura do Benfica já passávamos férias juntos. Ele ia com a minha família. Gastávamos um balúrdio em bolas, pois jogávamos num jardim e um dos postes era uma palmeira. Cada vez que a bola batia lá, ficava furada. Ele fartava-se de furar bolas.

No Benfica cruzei-me também com o Amoreirinha, Hélio Pinto… o João Vilela era mais velho, mas também joguei com ele, assim como ainda fui colega do João Coimbra. Também fui colega do malogrado Bruno Baião. Já estava a caminho de casa quando tudo aconteceu, mas marcou-nos a todos. Dava-me muito bem com ele, era amigo de casa, mesmo. É sempre um choque. Primeiro por sermos miúdos, e depois por sermos desportistas. Mexeu bastante com aquela geração.

Ao longo desses anos do Benfica tive vários treinadores importantes. O José Morais foi o primeiro, como já disse. Mais tarde, nos juniores e na equipa B, tive o Luís Roquete e o mister Chalana. Adorei essa dupla. Fomos campeões e são pessoas fantáticas. Mas não posso deixar de referir o meu treinador específico, que foi o José Henrique, o famoso “Zé Gato”. Costumo dizer que foi o meu pai futebolístico. Tudo o que aprendi, foi com ele. Também trabalhei com o Manuel Bento, na equipa B, mas não foi muito tempo.

Naquela altura a equipa B era totalmente diferente. Tinha muitos jogadores dispensados da equipa principal: Maniche, Jorge Ribeiro, Paulo Madeira…Eram jogadores que estavam ali por estar, dada a situação, ao lado de miúdos cheios de ambição. Quando me perguntam se alguma vez desci de divisão, eu digo que desci logo no Benfica. Isto é impensável. Aquilo valia tudo.

Apanhei o Porfírio, por exemplo. Um maluquinho, no bom sentido. Tem uma personalidade muito especial. Fazia as coisas sem maldade nenhuma, mas era uma peça. Lembro-me que o Estádio da Luz estava em obras e treinávamos no campo do Direito, em Monsanto. As condições eram precárias, os balneários eram contentores, e o Porfírio vinha de Ferrari. Outras vezes aparecia de mota. Por vezes ele não tinha espaço no balneário da equipa, quando chegava, e ia equipar-se no balneário dos treinadores. E se a concentração era na Luz, ele estacionava no parque da equipa principal.

Eu treinava frequentemente na equipa principal, que tinha então o Enke, Bossio, Nuno Santos ou Moreira. Eram guarda-redes de seleção, e eu era chamado aos treinos. Cheguei a trabalhar com Mourinho, Camacho e Jesualdo Ferreira. Foi com este último que fiz um jogo particular, com o Fátima, em 2002.

Em 2004 acabei por sair, em final de contrato. Não quiseram renovar. Nunca tive empresário, e naquela altura queria era jogar. Surgiu o convite do Vilafranquense, que não estava muito bem, na altura, mas estive lá seis meses. Depois fui para o Torreense, com o José Rachão, mas umas semanas depois ele saiu para o Vitória de Setúbal, naquele ano em que ganharam a Taça de Portugal.

Depois estive três épocas no Oriental, onde reencontrei o Luís Roquete. Infelizmente o clube também estava num período difícil, mas gostei muito. Desci e subi de divisão… cresci muito em Marvila.

Depois o mister Roquete foi para Elvas e convidou-me, em 2008/09. Foi a única experiência assim mais longe de casa. Fui conhecer uma nova realidade, viver fora, e também foi fantástico. Tive oportunidades de ir para outras zonas do país, mas, sinceramente, os projetos nunca foram suficientemente interessantes. Se calhar teria feito uma carreira melhor, nunca se sabe.

Em 2009/10 estive no Odivelas, mais um clube que estava em situação complicada. Mas como eu queria jogar, nem pensava muito nisso. Na época seguinte fui para o Carregado, que tinha descido da II Liga. Adorei jogar lá. As pessoas eram fantásticas. Tiravam do pouco que tinham para te dar. Aquilo que o futebol devia ser. O treinador era o Elói Zeferino, com quem fiquei com uma relação muito boa.

O mister levou-me depois para o Mafra, onde acabei por ficar nove anos. Foi onde estive mais tempo. Senti que ajudei bastante ao crescimento do clube, e isso dá um gozo diferente. Podia sentir que o clube tinha ficado na mesma, ou pior. Mas não. Senti que ajudei muito, como o clube me ajudou. Tirando o Benfica, que já era o clube do coração, o Mafra foi o clube que mais me marcou, e vai ficar para sempre.

Em nove anos também consegui “criar” uns quantos treinadores. Costumo dizer isso a brincar: eles não fizeram de mim jogador, mas eu fiz deles treinadores. Aquele que mais me marcou foi o Luís Freire, sem dúvida. O trajeto fala por ele, mas nota-se que tem algo de diferente, e vai ter sucesso. Desde logo por aquilo que é como pessoa. Toda a equipa técnica, de resto: simples, humildes, sem fantasmas. O que têm a dizer, de bom e de mau, dizem. Gostei muito, e acabámos por subir de divisão.

João Godinho no Mafra (Arquivo Pessoal)

Este ano estou no Real. Foi a forma como surgiu o convite, o interesse demonstrado, que me fez aceitar o desafio. Até pela Liga 3, que já se sabia que ia ter uma visibilidade grande. Foi a melhor decisão que podia ter tomado, depois do Mafra. São pessoas muito simples, humildes, que ajudam aquilo que conseguem, dão tudo o que têm. O grupo é cinco estrelas e as coisas estão a correr bem.

Olhando para trás, a mágoa que eu tenho é não ter surgido a oportunidade para eu ver se tinha capacidade para chegar à Liga. Acabo a carreira sem saber isso. Posso achar que tinha capacidade, e depois ser diferente ao chegar lá. E a mágoa é ficar sem saber isso. Mas é o que é. Vou ter sempre orgulho na pessoa que fui dentro do futebol. Isso vale mais do que qualquer troféu. E como nunca tive empresário, sei que conquistei tudo por mim. Isso é um orgulho.

Relativamente ao futuro, para ser o mais sincero possível, não me vejo como treinador principal. Acho que não tenho perfil para certas coisas que fogem ao futebol. E não vou mudar. Mas o meu plano é ser treinador de guarda-redes a nível profissional. Adoro treinar miúdos, foi das melhores coisas que decidi fazer. Enquanto outros estão a descansar, eu estou a dar treino, mas não mudava nada. Os miúdos nem sabem o quanto me ensinam todos os dias. Ali vês a evolução muito rapidamente, é gratificante.

Fora do futebol tenho o hobby de tocar bateria. O responsável também é o meu pai. Sempre tocou, sempre tive bateria em casa, e eu ia-me sentando para fazer barulho. Fui aprendendo sozinho, e é o que gosto mais de fazer fora do desporto. Estar ali duas ou três horas a tocar… é um bom escape.»