"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.

João Pereira, 31 anos, defesa do Torreense

João Pereira em criança (arquivo pessoal)

«Sou natural de Valada, no Cartaxo. Comecei a jogar por influência do mister Nuno Presume, que estava no Sport Lisboa e Cartaxo, e entrei para os infantis. O meu avô era guarda-redes da equipa da minha aldeia, mas de resto não havia mais nenhuma ligação familiar ao futebol.

Houve um ano em que fui convidado para ir treinar ao Sporting, mas as coisas não seguiram em frente. Depois fizemos o Campeonato Nacional de Iniciados. Dessa equipa saíram três jogadores comigo para o Benfica.

João Pereira, ainda como jogador do Sport Lisboa e Cartaxo, recebe o prémio de melhor jogador de um torneio de futebol juvenil (arquivo pessoal)

Embora não vivesse longe de Lisboa, fiquei a viver nas instalações que o Benfica tinha então nos Pupilos do Exército, até porque os meus pais não tinham muitas possibilidades. Na altura as condições do Benfica não tinham comparação com as de Sporting e FC Porto. Dividíamos um campo pelado para treinar. Depois começámos a ir para o sintético ao lado do estádio.

A adaptação a Lisboa foi fácil. Para a minha mãe é que não foi, mas ela tentou disfarçar isso. Só mais tarde é que tive a perceção que foram tempos difíceis para ela, até porque sou filho único. Foi mais difícil para ela do que para mim, mas ela tentou não ser mãe galinha.

Depois fui um dos que jogadores que inauguraram o centro de estágio do Seixal. Aí tínhamos todas as condições. Por ser tudo muito novo para nós, a malta ficava em êxtase. Tiveram de criar regras, como apagar as luzes às 23 horas. E depois às 7 horas começava a tocar rádio para acordarmos. Eu gosto muito de música, de rock, e curiosamente tocava sempre a Best Rock FM.

Lembro-me de histórias giras desse tempo. Uma vez fizemos um protesto no Seixal por causa da regra das luzes apagadas às 23 horas. Fomos todos para o corredor. Primeiro foi lá o Sr. Fernando, que era o responsável, dizer-nos para irmos para os quartos. Continuamos lá, até que veio o Sr. (António) Carraça, que só disse: “Tudo para os quartos!”. Desaparecemos em poucos segundos.

Ainda no tempo dos Pupilos do Exército tínhamos de informar quando não dormíamos lá. Naqueles dias a seguir aos jogos ou isso, em que podemos ir a casa, ou ficar em casa de amigos. Às vezes íamos sair à noite, mas não podíamos regressar logo ao início da manhã seguinte, pois assim os responsáveis iam perceber que tínhamos ido sair à noite. Então íamos para a rua às quatro da tarde, depois jantávamos, ficávamos na discoteca até fechar, e de manhã íamos para o metro. Fazíamos a linha mais longa, até à Amadora, umas dez vezes para cada lado, a dormir nos bancos. A fazer tempo para voltar ao centro de estágio pela hora de almoço.

Entre os colegas que tive na formação do Benfica, o David Simão era claramente aquele que já se destacava, pelo pé esquerdo que tinha. O Nélson Oliveira, quando chegou, também teve sempre grande destaque. E depois aquele que chegou mais tarde, mas que sempre achei que tinha uma qualidade incrível, foi o Mário Rui.

O Danilo, que chegou tarde ao Benfica, e até era número 10 inicialmente, foi o jogador que me surpreendeu mais. Sempre achei que o David Simão podia ter ido mais além, apesar da boa carreira que está a fazer, mas tenho de referir outro, o José Coelho, que se pensava que ia ser um craque, ainda que nos juniores já não fosse sempre titular.

Relativamente aos treinadores que apanhei na formação, faço questão de mencionar o mister Amaral, que me marcou muito, no Cartaxo, naquela temporada no Nacional de Iniciados. Depois no Benfica apanhei o Luvas Pretas, João Alves, uma grande figura do futebol português e do Benfica. E o mister Bruno Lage, que já se via que tinha grande qualidade. O Sr. Jaime Graça, que é uma referência para o Lage, também falava muito comigo. Chamava-me Maldini, e estava sempre a dizer quais os movimentos que eu devia fazer.

Cheguei a fazer a pré-época na equipa principal. Primeiro com o Quique Flores, e depois dois ou três anos com o Jorge Jesus. Esses meses com Jesus valeram por épocas inteiras. Agora é cliché dizer isto, mas o nível tático era absurdo. A intensidade que ele colocava, o rigor ao milímetro… às vezes parece uma estupidez, mas é mesmo assim, e dá frutos.

Lembro-me de estar com uma entorse e não querer parar. Até ia fazer tratamento sem o mister ver, e, um dia, ele entrou no posto médico e disse: “Menino, esse pé está bonito… Mas com esse espírito vai dar certo”. Isso marcou-me muito.

A experiência na equipa principal foi espetacular. Os jogadores com mais currículo, como Aimar e Saviola, foram aqueles que melhor receberam os jovens. Acabei por sair sem jogar, mas não tenho remorsos nenhuns. Até me lembro que o mister Jorge Jesus nunca nos metia a jogar nos jogos de pré-época. Pedi ao Rui Costa que me deixasse sair, pois queria entrar em equipas de II Liga, para ter minutos. Fui eu que fiz pressão para sair. Sempre tive os pés bem assentes na terra, e queria era jogar. Não queria aguentar ao máximo só para viver o sonho.

Fui então emprestado ao Fátima. Estavam lá o João Fonseca, o Pedro Correia, o João Vilela, o David Simão. O treinador era o Rui Vitória, muito humano, alguém que tenta perceber o lado dos jogadores. Foi uma experiência espetacular. Acabámos em quinto ou sexto lugar. É engraçado que a dupla de centrais era eu e o Nélson Veríssimo. Era como se fosse o meu pai. Ele mandava e eu fazia, até porque eu tinha maior disponibilidade física. Apesar de estar sempre dentro do grupo, e de brincar com todos nós, já tinha aquela autoridade de capitão. Via-se que ia ter sucesso, fosse como fosse. Agora está a treinar o Benfica e foi apanhar um grupo bastante difícil, uma equipa com muita pressão. Está a fazer o melhor que consegue. Não é fácil, mas desejo-lhe a maior sorte do mundo.

Depois das duas épocas de empréstimo ao Fátima termina a ligação ao Benfica e assino pelo Beira-mar. Fiz uma pré-época boa, mas as coisas não correram muito bem. Fui emprestado ao Trofense, onde apanhei o Tiago e o Zé Manuel. Foi uma experiência fantástica.

João Pereira no Sheriff

No final de 2011 assinei pelo Sheriff. Estava na seleção sub-21, jogámos contra a Moldávia e até marquei um golo. Foi aí que apareceu o Sheriff. Ainda recentemente encontrei o Rui Jorge e tive oportunidade de dizer-lhe isto na cara: foi o treinador que me fez homem, devo-lhe tudo.

A experiência na Moldávia foi difícil. Se fosse hoje seria melhor, mas não digo que tenha sido má. Desde logo pelo nível monetário, mas também pela experiência. Acabou da pior maneira, com a lesão, mas não me arrependo. Estávamos a jogar a qualificação para a Liga dos Campeões, com o Dinamo Zagreb, e tinha Krasnodar e Rubin Kazan interessados. Tinha falado com eles no hotel antes do jogo de Zagreb, mas nesse segundo jogo sofri uma lesão no pé e fiquei de setembro a janeiro a recuperar. No final da lesão tive o convite do Nordsjaelland, que também estava nas provas europeias. Fui colega do filho do Michael Laudrup, Andreas, e o treinador era o Kasper Hjulmand, que é agora selecionador dinamarquês. A minha relação com ele não foi muito boa, na verdade. Talvez por ter chegado com a lesão, fiquei seis meses encostado. Nunca estive bem a nível físico. Depois fui para o Velje, um histórico na segunda divisão. Estive lá um ano e meio. Voltei a jogar, a ser feliz, a sentir a bola como eu queria.

No SonderjyskE fui vice-campeão, com uma época espetacular. Fui o melhor lateral esquerdo do campeonato, e depois assinei pela Odense. A primeira época foi melhor do que a segunda, até porque depois a minha mãe faleceu. Em 2018 voltei ao SonderjyskE.

O defesa a treinar no SonderjyskE

Posso dizer que devo muito à Dinamarca. Todas as pessoas deviam viver lá um ano, pelo menos. É um curso de vida. Agora falo disto abertamente: eu não conseguia ter filhos, e foi na Dinamarca que consegui ser pai, por fertilização in vitro. Nem paguei nada, porque o sistema de saúde la é todo gratuito. Foram anos espetaculares, e o meu filhote tem uma costela dinamarquesa. Ainda não voltei lá, mas tenho lá mais dois filhotes congelados, e tenho de lá ir buscá-los.

Estou no Torreense desde janeiro de 2021. Queria que o meu filho criasse raízes em Portugal. Apesar de nunca ter perdido a ligação à família, que é pequena, queia que ele estivesse mais próximo dos familiares. Apesar de me sentir feliz e realizado na Dinamarca, não deixamos de ser emigrantes. Em casa é que estamos bem.

O Torreense é um grande projeto. Tem grandes responsáveis, que fazem com que o clube tenha uma mentalidade vencedora, e queira chegar lá acima. A fase de subida não vai ser fácil, mas temos todas as condições para conseguir.

Para além do futebol tenho feito alguns investimentos. Tenho casa que recuperei e que alugo em Lisboa, outras que compro e vendo. Agora tenho o projeto de abrir uma casa de chá em Ourém, para reabilitar um café histórico de lá com a minha mulher.

Gosto de ocupar o tempo. Tenho o gosto pela pastelaria, de fazer pão, pizzas ou massas, mas acima de tudo tenho a paixão pela música. Sempre fui uma “rockstar wannabee”. Se me dessem a possibilidade ser o Cristiano Ronaldo ou o Eric Clapton, ou mesmo um Angus Young, eu escolhia o rock and roll. A música sempre esteve dentro de mim. Quem sabe, no futuro... Costumo tocar para o meu filho, e ele normalmente gosta. É bom tocar para ele, não é muito crítico.»