"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.

Valter Manaia, 41 anos, guarda-redes do SG Sacavenense

«Cresci na Charneca do Lumiar, e a minha paixão pelo futebol vem do meu pai, que me levava sempre a ver os jogos do Sporting. Com 11 anos tive oportunidade de ir às captações do Sporting. O Carvalho era o treinador de guarda-redes, com o Osvaldo Silva como treinador principal. Acabei por ficar, mas eram muitos miúdos, e como não jogava acabei por vir embora, ao fim de pouco tempo. Fiquei triste e desiludido, na altura. Surgiu a possibilidade de ir para o Charneca, mas como estava chateado com as balizas, decidi tentar ir à frente. Mas aquilo que tem de ser, tem muita força, como se costuma dizer: acabo por ficar, mas logo na primeira semana precisam de um guarda-redes e os colegas convenceram-me a ir. Começa aí o meu trajeto.

Aos 16 anos vou para o Sacavenense. Uma mudança que surge através do mister Rui Torres, que foi ver um jogo e convidou-me. No primeiro ano o Charneca não deixou sair, mas ficou combinado que deixava depois, sem cobrar nada. No Sacavenense cresci ainda mais. Fui bem recebido, num clube com uma boa formação. É lá que conheço um dos meus melhores amigo, o Hugo Moita. A partir daí foi sempre a subir. Nos juniores já era convocado para os seniores, mas não chegou a fazer nenhum jogo pelos seniores. Era visto como um guarda-redes de futuro, mas um colega, o Nuno Carvalho (ndr. Antigo jogador do Boavista), convida-me para ir com ele para o projeto do Oeiras. Subimos várias vezes de divisão. Tivemos como treinador o Paulo Leitão, que esteve ligado à formação do sporting. Depois surge o convite que me dá o crescimento que eu precisava, que é o Barreirense, um histórico da margem sul do Tejo. Deu-me mais visibilidade, e começam a aparecer clubes da Liga interessados, como Vitória de Setúbal e o Olhanense.

Aí, em 2009, fui convocado pela primeira vez para a seleção angolana, com o Professor Oliveira Gonçalves. Conheci o Mantorras, Manucho, Flávio, André Macanga, Marco Airosa, Kali, etc. Primeiro fizemos um estágio na Academia de Alcochete, no qual fiz a estreia, frente a Marrocos. Depois fomos para Angola, jogar o apuramento para o Mundial 2010. Foi emocionante, pois nunca tinha ido lá. Eu nasci em Portugal, mas os meus pais são angolanos. Já não via o meu pai há vários anos, e foi marcante para ele ouvir o meu nome na rádio e na televisão, quando saiu a convocatória. Tive oportunidade de estar com ele, com as lágrimas nos olhos. Foi um reencontro bonito, que marcou a nossa reaproximação entre pai e filho.

Valter com o amigo Marco Airosa, com quem partilhou o balneário da seleção angolana.

A minha carreira dá um salto nessa altura. Começam a aparecer empresários, como é normal, e o Ricardo Borges da Fonseca surge com uma proposta do Vitória de Setúbal, mas seria como terceiro guarda-redes. Nessa altura surge a oferta do Recreativo do Libolo, que era irrecusável. Era um regresso às origens, com 26 ou 27 anos. Um clube em ascensão, com um forte investimento, com uma estrutura portuguesa. Cheguei a partilhar balneário com João Tomás, Andrés Madrid, e treinado por Mariano Barreto ou Henrique Calisto. Não pensei duas vezes. Estou em dois dos quatro títulos do Girabola do Libolo. Também ganhei duas Supertaças, e ainda uma Taça de Angola, quando estive emprestado ao ASA. Para além disso participei na Liga dos Campeões.

Valter Manaia com a Supertaça angolana conquistada pelo Recreativo Libolo em 2016 (instagram)

Foram os anos mais felizes da minha carreira, mas acabo por sair mal do clube. Fiquei triste porque não foi reconhecido tudo aquilo que eu fiz pelo clube. Um senhor, o treinador Paulo Torres, andou quase a pedir-me por favor para entrar no clube. Dei-lhe a mão, porque o clube precisava de alguém com experiencia, e as coisas não acabaram bem com ele, «fez-me a cama». Com os dirigentes tenho uma boa relação, e sou grato por tudo o que vivi no Lobolo. Ficará para sempre marcado na minha vida, pois estive lá onze anos. Deixei um marco bonito no clube, pois continuo a ser procurado e acarinhado pelos adeptos. Ainda têm esperança que volte, noutras funções.

Decidi voltar a Portugal porque o meu filho tem 11 anos, e poucos aniversários passei com ele. O Libolo também começou a ter dificuldades financeiras, e houve o problema da desvalorização da moeda e das dificuldades de câmbio e transferência do dinheiro. Já não compensava tanto estar lá. Para além disso estava habituado a lutar por títulos, e o Libolo passou a lutar pela permanência. Já não me revia naquilo, pois era o único sobrevivente da estrutura campeã. Passei pelo melhor e pelo pior. Aguentei muita coisa. Senti uma mágoa profunda no fim, pois não senti reconhecimento. Fui eu que tive a ideia de criar lá uma sala de convívio para os jogadores, por exemplo. Criei um pouco o modelo de acolhimento dos jogadores, pois estávamos a 300 quilómetros de Luanda, e Calulo é pequeno, tem pouca coisa para fazer. O clube dava todas as condições, mas a cidade não oferecia muito, sobretudo para jogadores que vinham da Europa.

Ao voltar a Portugal fui para o Alverca treinar, na equipa B, mas as inscrições já estavam fechadas. Aparece-me o Alta de Lisboa, através do Rúben Gouveia, que foi meu colega em Angola. Nesse campeonato podia ser inscrito em fevereiro, e estavam lá algumas pessoas que já me conheciam. Estou muito grato à forma como me receberam. Fiz uma segunda volta muito boa, e depois apareceram vários clubes no final da época: fui abordado pelo Real Massamá, mas não se concretizou, e entretanto apareceu o Sacavenense. Não pensei duas vezes: era um regresso a casa. Também fui muito bem recebido. Sinto-me bem no clube, estou aqui de braços abertos para ajudar. Temos bons valores, miúdos com muito potencial. Aquilo é um clube quase familiar, com pessoas que vivem muito o clube, com humildade e disponibilidade. Tenta passar esta experiência que tenho, esta bagagem, aos mais novos. É uma das coisas que sei em que sou forte, é a liderança. Mas sou um líder cómico, por assim dizer. Não gosto de andar de cara fechada. A melhor liderança é perceberes que todos temos a nossa liberdade, mas existem referências que nos guiam. Tento fazer do balneário o nosso núcleo, pois vai muito dali para o jogo. Se formos unidos, vamos enfrentar as contrariedades. Ninguém é maior do que o clube. Podes ser um excelente jogador, mas não és insubstituível.

O futebol sempre foi a minha paixão, a minha profissão, mas paralelamente fiz moda e publicidade, como hobbies. Cheguei a desfilar na Moda Lisboa, para o Dino Alves, e também já desfilei para o Nuno Gama. Já fiz varias publicidades. Com a Barbara Guimarães, por exemplo, para um banco. Mesmo em Angola mantive esse trajeto, e fui a imagem da campanha de uma operadora televisiva.

Agora, neste regresso a Portugal, fui convidado para fazer a campanha do Placard que anda aí, em que sou a principal figura do cartaz, que está espalhado de norte e sul do pais, durante um ano. Os colegas brincam muito comigo. Dizem que estão fartos de me ver nos autocarros, nos outdoors, na televisão. Agora ainda vai sair a segunda parte da campanha.

Também já fui abordado para fazer representação, mas aí teria de abdicar da carreira desportiva. É uma área complicada, pois podes estar vários meses sem nada. Não podes olhar para isto como meio de sustento. Por muito que custe, pois é o sonho de muita gente. O ideal é teres uma atividade fixa, e depois isto é um extra.

Quando estava no Libolo também decidi fazer um investimento, pois também tinha a paixão pelos serviços de classe. Decidi abrir um serviço de chauffeur. Havia uma lacuna no mercado angolano, que tinha a ver com serviços de luxo, nomeadamente para estrangeiros que iam para o país. Tive bastante sucesso, pois era das poucas empresas que faziam isso em Angola. É um negócio que continua a funcionar, vou gerindo à distância, com a minha equipa no terreno. E depois também abri o negócio em Portugal, quando voltei para cá.

No futuro quero manter estas atividades, mas também continuar ligado ao futebol. Faço questão disso. É a minha vida, e é também uma forma de retribuir aquilo que o futebol me deu. Passar a minha experiencia para outas funções. Mas o pós-futebol ainda está longe. Pelo menos mais duas ou três épocas. Mas quero ficar ligado ao futebol. Tirei um curso de ‘team manager’, na Portugal School, da Federação Portuguesa de Futebol, e é por aí que quero seguir.»