"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.

João Faria, 31 anos, defesa da Oliveirense

«Estou a festejar a minha quarta subida de divisão à II Liga. A terceira consecutiva. É uma sensação fantástica. Todas tiveram um sabor diferente, todas foram especiais. Esta é especial sobretudo por tudo o que se passou. Entrei com o barco a meio, na UD Oliveirense, mas apanhei um grupo que me recebeu muito bem, um plantel muito unido. Não era um objetivo do início da época, pois estava no Trofense. Em janeiro disseram-me que não ia ter muitas oportunidades, pelo que não hesitei quando surgiu o convite da Oliveirense. Já me tinha roubado uma subida, e costumo dizer que agora fui buscar essa subida que a própria Oliveirense me tinha roubado.

Encontrei um clube muito estável. Não falta nada aos jogadores, mas já esperava isso, pois conheço o Duarte Duarte há muito tempo, e ele já me tinha dito. Foi uma peça fundamental para a minha mudança.

Sou natural de Barcelos. O meu avô, Rodrigo Silva, foi guarda-redes do Gil Vicente durante muitos anos. Não o vi jogar, mas tive sempre essa ligação ao futebol. Também ia sempre ver jogar o meu irmão, embora ele não tenha sido profissional. E depois jogava com os amigos da aldeia. Subíamos a rede da escola para jogar. Era o mais pequeno do grupo, mas andava sempre lá.

Comecei a jogar no Gil Vicente aos nove anos, nos infantis, embora ainda tivesse idade de escolinhas. Fazia cerca de cinco quilómetros a pé para ir treinar. Não tinha quem me levasse. Os meus pais ensinaram-me o caminho, e lá ia eu com a mochila às costas. Esses anos deixam marcas para a vida. Sobretudo a jogar nos pelados. Deixam marca nas pernas, dos carrinhos e das vezes que íamos ao chão. As calças colavam depois. São tempos bons, que dá gosto recordar. As amizades que fazemos.

João Faria nos infantis do Gil Vicente: na fila de baixo, é o primeiro a contar da esquerda (arquivo pessoal)

Ao chegar aos seniores ainda fiz a pré-época com o Gil Vicente, na companhia do meu colega Tiago Torres, mas acabámos por não ficar. O meu pai tinha um amigo que conhecia o presidente do Ribeirão e fui à experiência. Cheguei numa terça-feira e no dia seguinte fiz um jogo-treino: joguei trinta minutos e fiz um golo. Na semana seguinte marquei outro golo e eles começaram a pensar que tinham um central goleador. Ao terceiro jogo voltei a marcar, e então aí eles decidiram mesmo ficar comigo. O treinador ainda estava um bocado de pé atrás, mas o presidente disse que eu ficava. Acabei por ser o jogador com mais minutos.

Na primeira época cheguei à seleção sub-20, e na segunda aos sub-21. Foi algo completamente inesperado. Nem à seleção de Braga tinha sido chamado. Não queria acreditar.

Há uma história muito engraçada sobre a seleção. O primeiro estágio foi em Rio Maior, e eu tinha um amigo que estudava lá. Pedi-lhe que me desse boleia, e no início da viagem ele foi à bomba, mas já não se lembrava bem qual era o combustível. Ele lá arriscou, mas quando estávamos a entrar na autoestrada ele teve de parar para tirar o ticket da portagem e depois o carro arrancou aos solavancos. Ficámos parados logo à saída de Barcelos. Pensei que ia chegar atrasado logo na primeira convocatória, mas depois fomos no carro do pai dele.

João Faria foi internacional sub-20 e sub-21 (arquivo pessoal)

Em 2011/12 fui para o Varzim, onde festejei a minha primeira subida à II Liga. Foi uma época perfeita. Era um grupo novo, que só tinha quatro ou cinco jogadores da época anterior. Conseguimos formar um grupo muito bom, apesar das dificuldades financeiras que o clube tinha, e que acabaram por impedir que a subida fosse consumada. Ultrapassámos todas as dificuldades, com um treinador que estava sempre do nosso lado. Foi o ano de maior aprendizagem. O Dito ensinou-me coisas que eu nunca pensei que pudessem resultar. Falo de detalhes, de certos gestos ou palavras em campo. Dou um exemplo: eu costumava levantar muito os braços quando não tinha ninguém a quem passar a bola. Uma vez ele parou o treino e disse-me que eu não podia fazer aquilo, pois era um indicador de pressão para o adversário. Alguns minutos depois fiz a mesma coisa e ele voltou a parar o treino. Deixou claro que eu não jogava se continuasse a fazer aquilo. Curiosamente, no último jogo, o do título, marcámos um golo assim. O central do Tondela abria muitos os braços, e o Dito alertou para isso ao intervalo. Na segunda parte tivemos um lance em que fizemos pressão, roubámos a bola e marcámos golo.

João Faria, de megafone na mão, festeja a subida do Varzim à II Liga (foto: FB Varzim/Luís Xavier)

A mudança para o Benfica B foi um bocado inesperada. Pensava ficar no Varzim, mas era irrecusável. Foi uma decisão bem tomada, na altura, mas acabou por não ser o que eu esperava. Se calhar não estava preparado mentalmente. E depois, ao não jogar, deixei-me ir abaixo. Foi o ano de regresso da equipa B, e era muito utilizada para rodar jogadores da equipa principal. Como o Sidnei, por exemplo. Apareciam lá ao domingo para almoçar e nós começávamos logo a ver que íamos para a bancada. O Nélson Veríssimo era então adjunto do Benfica B, auxiliava o Norton de Matos. Era igual ao que é hoje: sempre muito tranquilo, muito ponderado no que diz e no que faz.

Fotografia oficial de João Faria como jogador do Benfica

Em dezembro surgiu a oportunidade de sair para o Salamanca e nem olhei para trás. Toda a gente dizia que eu estava a fazer mal, pois tinha mais três anos de contrato com o Benfica, mas eu queria ser feliz. Fui para um clube enorme, histórico, que ia ter uma parceria com o Jorge Mendes, mas não se concretizou.

Ao segundo jogo, contra o Oviedo, fiz uma exibição muito boa. No final do jogo estava tudo a dar-me os parabéns e o treinador veio dizer-me que ainda se notava a falta de ritmo. Vi logo que ia encostar na semana seguinte. Depois tive uma lesão, mais tarde, e acabaram por ser quatro meses difíceis. O clube não cumpria com o pagamento dos ordenados e estive lá o tempo todo sem ver um cêntimo. Cheguei a ser despejado da casa onde vivia. O clube disse para esperar, que iam resolver, mas chegou a maio e o senhorio ameaçou com a via judicial. Falei com o treinador e lá arranjaram uma solução, uma casa do presidente, onde fiquei os últimos 20 dias.

Em 2013 voltei ao Ribeirão, para entrar na montra novamente. Mas logo em setembro tive uma rotura de ligamentos. Fiquei parado seis meses, mas ao voltar voltei a lesionar-se, frente ao Varzim. Mais nove meses de paragem. Foram duas épocas praticamente sem competir.

Em 2015 decidi arriscar. Existia o interesse do Limianos, através do Carlos Cunha, que queria muito que eu fosse para lá, mas eu tinha medo por causa do piso sintético. Decidi arriscar no Vilaverdense, que era mais desconhecido para mim, mas correu bem. Foi o ano zero. Tenho uma carreira antes da lesão e outra depois da lesão.

O Merelinense, em 2016/17, foi a época de confirmação. Fui totalista, com o Micael Sequeira, e marquei cinco ou seis golos. Ficámos muito perto da subida. Bastava ganhar em Vildemoinhos, mas empatámos e subiu a Oliveirense.

Em 2017/18 estive no Famalicão, onde reencontrei o Dito. Foi ele que me convenceu a ir para lá. Foi um ano bom. Diferente, pois estava a começar do zero e tinha estado noutra realidade completamente diferente. Queria mostrar ao treinador que merecia aquela oportunidade, e acho que dei uma boa resposta. Creio que só não fiz quatro jogos: dois por castigo e dois por opção. Foi uma época boa, na qual conseguimos o objetivo, que era a permanência. Fizemos uma primeira volta espetacular, nos lugares cimeiros, mas depois fomos um pouco abaixo, algo que é normal acontecer na II Liga.

Depois fiz dois anos no Vizela. No primeiro perdemos a primeira eliminatória do playoff, e no segundo íamos destacadíssimos em primeiro lugar quando surgiu a pandemia, e acabámos por subir. Foi muito enriquecedor. Era o clique que me faltava, para atingir outros voos. Fazia-me falta aquela paixão que o mister Álvaro Pacheco passa em todos os momentos. Uma vez saltou-me para as costas no final de um jogo, a festejar a vitória, e ferrou-me a orelha. Ficou quase em ferida.

Ao fim desses dois anos estava em final de contrato com o Vizela, ao contrário dos outros centrais, e disseram-me que pretendiam ir buscar um central com mais experiência de II Liga. Eu agradeci o tempo que passei lá. O futebol é mesmo assim. O que me deixou mais triste foi tratar-se de um clube estável, e numa altura em que a família estava a crescer. Comecei a pensar que não ia encontrar outro clube assim, mas nesse mesmo dia surgiu a proposta do Trofense, onde consegui mais uma subida.

Foi uma época atípica, pois estava a ser criada a SAD, e era tudo novo, incluindo a estrutura. Ao princípio houve alguma desorganização, mas acabou de forma fantástica, com um sabor especial por tudo o que nos aconteceu. A três jornadas do fim estávamos em terceiro, e bastava que uma das equipas acima ganhasse um jogo. Gondomar e Leça não conseguiram ganhar, e nós ganhámos.

João Faria: subida à II Liga e troféu de campeão pelo Trofense (arquivo pessoal)

Agora foi a quarta subida com a Oliveirense, a terceira seguida, mas não me vejo como um talismã. O talismã é sempre o grupo, ele é que torna tudo possível. Tenho tido alguma sorte. Já disseram que eu escolhia sempre os barcos certos, e eu respondi se não era eu que os fazia. Mas isso foi na brincadeira. Tenho apanhado grupos fantásticos. Dizem é que sou muito chato dentro de campo, sempre a dar indicações. Às vezes chego a casa e o meu pai dá-me na cabeça. Diz que, se fosse meu colega, já me tinha mandado dar uma curva.

O equilíbrio do grupo é muito importante. A Oliveirense, este ano, deu a volta ao resultado várias vezes. A equipa conseguiu estar sempre focada, estável emocionalmente, e unida.

Agora quero ser campeão pela terceira vez. Ainda por cima num estádio emblemático. Se calhar não há melhor coisa do que ir ao Jamor e levantar o caneco. Estamos focados nisso, vamos à luta. Levantar o caneco no Jamor seria memorável, não teria comparação com nada.

Relativamente à próxima época, ainda não comecei muito a pensar nisso. Ainda estamos a saborear um pouco a subida e focados na final. Depois conversamos.

Qualquer jogador tem o objetivo de chegar à Liga. Sei que vai ser difícil, mas trabalhamos por oportunidades. O mais importante é ser feliz, fazer a minha família feliz. Não estou obcecado com isso. Sou obcecado por ganhar. E depois chegar a casa ver os meus filhos felizes, abraçarem-me e dizerem que sou um campeão.

Para além do futebol tenho uma empresa que foi criada em 2020. A lojapro.pt, de produtos de ortopedia, geriatria e consumíveis diversos. O meu cunhado tinha a empresa-mãe, e decidimos abrir um franchising em Vila Verde. A minha mulher e a minha cunhada é que dão a cara. Eu sou o burro de carga. Depois dos treinos encho a carrinha e vou fazer as entregas. Achámos que era uma boa oportunidade. A minha esposa estava desempregada, e o meu filho mais velho tinha dois anos. Tínhamos produtos muito vendidos, por causa da pandemia, e era uma atividade que dava para conciliar. Arregaço as mangas e trabalho de tarde. O objetivo é fazer crescer a empresa, também para quando acabar a carreira, embora tenha tirado também o curso de treinador. Sei que é muito difícil, mas gostaria de ir por aí. Também é um objetivo.»

[foto de capa do artigo cedida pela UD Oliveirense]