"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.

Jorge Ferreira, 24 anos, avançado do Nun'Álvares.


«O futebol apareceu na minha vida um pouco como apareceu na da maioria das crianças. Comecei por jogar na escola e depois na rua com os meus amigos. Pouco depois, comecei a jogar nas escolinhas do clube da terra, a Associação Cultural Desportiva Duas Igrejas. Entretanto, tive o convite do Rebordosa e foi lá que fiz toda a minha formação.

O Rebordosa é, na minha opinião, o maior clube da terra. Tive propostas para sair, mas como gostava de lá estar, fui ficando. Fiz lá a minha estreia como sénior aos 17/18 anos. Foi também aí que arranjei o primeiro emprego que ainda hoje mantenho.

É difícil conciliar o meu trabalho com o futebol. Por norma entro por volta das seis/sete da manhã. Sou distribuidor de carne e entrego a carne em talhos, restaurantes e grandes superfícies. Carrego os bois às costas, colocando as coisas em pratos limpos. Em média faço 10 horas de trabalho por dia. Saio às 18h00 e arranco para o treino.

Este ano jogo no Nun’Álvares e os treinos são por volta das 20h30 e acabam pouco depois das 22h. Chegar e não chegar a casa, são 23h. Janto e vou dormir para acordar às 5 da manhã no dia seguinte. Não trabalho aos sábados e passo quase todo o dia a dormir para domingo estar como novo para jogar.

Joguei no Castêlo da Maia nos últimos dois anos, mas foi muito complicado. Ter de ir para a Maia e voltar para Baltar era muito desgastante. Foi por isso que este ano não continuei. Recebi propostas da Elite e até do Campeonato Nacional de Seniores, mas rejeitei-as por causa do trabalho. Acabei por aceitar o convite do Nun’Álvares, não só por ser um clube do concelho, mas por causa do meu cunhado.


 

Jorge Ferreira ao serviço do Castêlo da Maia, o último clube que representou antes de assinar pelo Nun'Álvares para honrar a história do cunhado. 

A minha paixão pelo futebol surgiu por causa do meu cunhado, o Tozé. Quando eu nasci, a minha irmã já namorava com o Tozé. Nessa altura, a minha mãe tinha um café e todos os domingos íamos ver o Tozé. Os meus ídolos eram o Tozé e o Deco. Mesmo na adolescência, preferia ir ver o Tozé jogar do que ir com os meus amigos às raparigas.

Estive quase a jogar contra o meu ídolo. No entanto, ele lesionou-se gravemente duas semanas antes e foi obrigado a deixar de jogar em virtude dessa lesão. Houve pessoas, eu inclusive, que chorámos pelo Tozé não ter tido o final da carreira que merecia. Creio que ele é o melhor marcador de sempre da AF Porto e uma lenda do Nun’Álvares. Jogou lá seis ou sete anos, conseguiu três subidas de divisão e é o melhor marcador da história do clube. Foi também por causa do Tozé que aceitei o convite do Nun’Álvares.

Na primeira época como sénior, no Rebordosa, cheguei atrasado a muitos treinos. Mas toda a gente sempre compreendeu a situação, sabiam do emprego que tinham e respeitaram-me. Como o trabalho é desgastante, chegava a esses treinos e ainda parecia que tinha a carne às costas. O meu corpo tornou-se mais forte por causa do trabalho e isso ajuda-me no futebol. Os treinadores até costumam dizer: ‘Para quem segura em touros, é fácil segurar os centrais.’  

Nunca pensei em desistir do futebol. É verdade que traz alguns problemas, nomeadamente com a família e amigos. É igual com todos os que andam nas distritais ou no Campeonato Nacional de Seniores. A minha família e os meus amigos estão sempre a lixar-me a cabeça. Dizem que tenho de deixar porque o futebol priva-me de muita coisa.


 

Jorge Ferreira é distribuidor de carne. Divide o tempo entre a distribuição e os relvados. 


Para ter ideia eu vivo com a minha mãe e há semanas em que mal a vejo. Os vizinhos já lhe perguntaram se eu estava imigrado, porque passou muito pouco tempo em casa. Saio de manhã e volto à noite. Escolhi o Nun’Álvares também porque de Recarei é perto de Baltar e permite-me chegar aos treinos a tempo mesmo quando saio mais tarde do trabalho.

Quando me perguntam por que razão ainda jogo, eu digo que quando era miúdo, não sabia o que era uma namorada ou sair com os amigos. Mas já sabia que adorava a bola. Se há algo que me faz feliz por acordar tão cedo… podia trabalhar 8 horas num emprego diferente ou trabalhar por turnos e não conseguir ir aos treinos ou jogar. Prefiro acordar cedo e sacrificar o meu corpo para jogar futebol. Não dá para explicar o que se sente por ir ao treino, por estar no balneário ou por estar em campo.»