"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.
Mauro Eustáquio, 28 anos, encerrou a carreira de jogador no início deste mês de abril, com a camisola do Caldas.
«Decidi agora encerrar a carreira de jogador. Na base desta decisão está uma boa proposta que apareceu, um projeto com nome no Canadá. Sou Development Phase Manager no Calvary Foothills, que é uma equipa-satélite do Cavalry FC, clube no qual joguei. Basicamente sou o coordenador da faixa etária entre os sub-11 e sub-15. O cargo é de muita responsabilidade, até pelo clube em si, e por sentir que vê potencial em mim. Sempre mantive ligação ao clube, as pessoas gostam de mim e da minha forma de ver o futebol.
Decidi aceitar esta proposta ambiciosa, pois sempre quis ficar ligado ao futebol, e já estou a pensar no futuro. Gosto de pensar que não estou a perder quatro ou cinco anos como jogadores, estou a ganhar quatro ou cinco anos como treinador. Estou a iniciar um projeto pessoal, que é continuar no futebol e, um dia, ser treinador. Não vejo isto como algo mau.
Sempre pensei em ser treinador um dia e continuar ligado ao futebol. Não me via como dirigente ou empresário. Por isso decidi já meter as fichas todas na carreira de treinador, numa idade boa. É uma mudança um bocado ambiciosa, que custou bastante. Não vou dizer que foi fácil. Perdi muitas horas de sono e até chorei. O Mauro de 40 anos aplaude esta decisão. Agora é a fase de aprendizagem, de levar muita porrada, como se costuma dizer.
A situação da covid-19 também levou a que tivesse de assumir este cargo agora, pois o clube tinha perdido alguns elementos, que decidiram ir para casa ou mudar de ramo. Eu gostava de ajudar o Caldas, que conseguiu o apuramento para a fase de acesso à Liga 3. Tenho muito carinho pelo clube e isso custou-me. Talvez tenha sido egoísta, mas o clube compreendeu.
Relativamente à minha rotina anterior, no Caldas treinava de noite. De manhã ia ao ginásio, depois acabava por ir almoçar com os meus pais, muitas vezes, e acaba por estar a tarde toda à espera do treino, por assim dizer. Obviamente que só me dei a esse luxo devido à bagagem que guardei quando estive no estrangeiro. Não é com o salário do Campeonato de Portugal que conseguimos uma vida confortável. Podemos chegar aos dois mil, talvez, mas depois não passa disso. Tenho outros objetivos de vida, e por isso decidi ficar por aqui.
Nasci em Portugal, mas o Canadá sempre foi bom para a minha família. Tinha um ano e meio quando os meus pais emigraram para lá. A minha mãe já tinha lá vivido, mas para o meu pai foi uma novidade. O meu irmão (ndr. Stephen, jogador do Paços de Ferreira) ainda não estava na fotografia, nasceu depois lá. O meu pai incutiu-nos o gosto pelo futebol e até foi nosso treinador vários anos. Não dizia nada em inglês, mas a minha mãe fazia de tradutora. Por isso o meu irmão nasceu logo com a pancada do futebol.
Com 12 anos voltámos para Portugal e eu fui jogar para o Nazarenos. Joguei com o Ricardo Esgaio logo nos sub-12. Ele já era chamado para ir ao Sporting, e no final do ano foi para a Academia. A nossa amizade continuou, e ainda hoje somos grandes amigos. Eu estava a jogar nos Estados Unidos quando ele casou, mas vim à boda e até participei na despedida de solteiro.
Curiosamente vou depois para a União de Leiria, nos juniores, e jogo com o irmão dele, o Tiago Esgaio (ndr. atualmente no Belenenses). Ele era mais novo, era juvenil, mas ia treinar várias vezes connosco.
Tive dois anos fantásticos em Leiria. Fomos sempre à fase final. Fui treinado pelo Kimmel (antigo jogador da União) e pelo Dominguez. A equipa tinha o Pedro Almeida, Guilherme Matos, Pepo, Filipe Oliveira e Pedro Torrado, jogadores com passagens pelo Benfica.
Depois surgiram os problemas financeiros, foi na altura em que a equipa principal da União entrou para um jogo com oito jogadores (ndr. frente ao Feirense, a 29 de abril de 2012). O clube foi para a distrital e não passei para a equipa principal. Não houve aquele trampolim que queríamos. Nesse verão andei a saltar de um lado para o outro, até que surgiu o Sporting de Pombal, e já na altura o acordo incluía que fosse treinador dos sub-13. Na equipa principal aprendi muito com jogadores como o Miguel Xavier, Micas Pedrosa e Pedro Emanuel.
Ainda em Leiria, no segundo ano de júnior, fui convocado para a seleção sub-20 do Canadá, país que representei até aos sub-23. Mas depois, no final dessa época em Pombal, recebi uma proposta de um clube canadiano, Ottawa Fury. Como a época só começava em janeiro do ano seguinte (2014), fui fazer seis meses ao Nazarenos.
Estive três anos no Ottawa Fury, onde fui treinado pelo lusodescendente Marc dos Santos, que agora está nos Vancouver Whitecaps, da MLS (ndr. Major League Soccer, dos Estados Unidos). A equipa técnica tinha ainda o irmão dele, Phillip, e o Martin Nash, irmão do Steve Nash (ndr. antiga estrela da NBA). Depois fui para Edmonton, um ano, e depois outro ano nos Estados Unidos, na Pensilvânia, onde joguei no Penn FC. Foi aí que, pela primeira vez, rompi o ligamento cruzado do joelho. Tive uma recuperação incrível com o Luís Nascimento, em Portugal. Foi então que voltei ao Canadá e fui jogar para o Cavalry FC, em 2019, mas dei cabo do outro joelho.
Falei novamente com o Luís para recuperar com ele. Aí já estávamos na situação da pandemia de covid-19, e por isso tive de fazer muito trabalho em casa, sozinho, através de vídeos, mas a recuperação foi incrível, uma vez mais. Depois comecei a conversar com o Caldas e acabei por assinar para esta época. É um clube conhecido pela estabilidade que dá aos jogadores. Nos últimos cinco anos deve ter contratado dez a quinze jogadores. Não é muito vulgar. Mesmo a nível profissional não é fácil encontrar jogadores que estejam no clube há cinco anos, ou mais, e o Caldas tem vários. E alguns deles já receberam convites para campeonatos profissionais, a receber mais, e optaram por ficar ali. É um clube muito humilde e trabalhador.
Agora iniciei esta nova etapa e tenho muitas metas. Estou a tirar cursos, tanto na UEFA como aqui no Canadá e nos Estados Unidos. Quero estar preparado quando for a altura de dar outro passo. Agora tenho muita porradinha para apanhar. É um cargo com muita responsabilidade. Eu ainda sou novo, mas gosto de ter responsabilidade. Tenho várias metas, e uma delas é fazer parte de uma equipa técnica em Portugal, mas sei que ainda é muito cedo para pensar nisso. Agora estou focado aqui no clube.»