"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.

Serginho, 38 anos, guarda-redes do Trofense, equipa que está a disputar a subida à II Liga. 

«Comecei a jogar no Clube Desportivo Soutense. Sou natural de São Miguel de Souto e a minha casa é ao lado do campo de futebol. O gosto pelo futebol começou muito cedo, logo aos seis anos. Acabei por começar a jogar aqui pelo facto de ter o campo ao lado e do meu pai fazer parte da direção.

No último ano de juvenil, salvo erro, fui para os juniores do União de Lamas disputar o Campeonato Nacional de Juniores. Na altura jogámos contra o Boavista e FC Porto, era muito mais competitivo e o União de Lamas tinha a equipa na II Liga, era inclusive uma das melhores da prova, e estava mais perto de estar num bom clube como sénior e de me tornar profissional de futebol.

Quando faltava meio ano para acabar a minha época de júnior, assinei contrato profissional com o União de Lamas. Fiquei lá quatro anos. O clube marcou-me muito, deu-me oportunidade de jogar num escalão profissional e ajudou-me a tornar um bom profissional. Apanhei grandes jogadores como o Paulo Sousa, que foi internacional português, e o Sérgio Duarte, enfim, muitos que tinham passado por grandes clubes e que tinham jogado na primeira divisão.

O União de Lamas atravessou uma crise profunda, da qual ainda hoje não se conseguiu reerguer e estive oito meses sem receber. Já era sénior e precisava de dinheiro como toda a gente precisa para as suas coisas. Fui obrigado a acionar a cláusula de rescisão do contrato em dezembro, mas só ficou tudo resolvido em fevereiro.

Esse tempo em que estive sem clube foi caricato, mas ao mesmo tempo serviu de lição. Já quando estava a acabar a escola, trabalhava na sapataria da minha madrinha. Venho de uma família pobre, mas trabalhadora, humilde e séria. Não tive problemas e graças a Deus consegui arranjar um emprego numa esplanada no Furadouro. Trabalhei lá durante três meses e foi uma experiência que vou recordar para sempre.


 

Serginho esteve seis épocas ligado ao Vitória


Fiquei meio ano sem jogar até ir para o Lusitânia Lourosa. O Lusitânia Lourosa estava na terceira divisão, a época correu-me muito bem e subimos à II B. O Lourosa é um clube fantástico, é uma terra que vive o futebol a 200 por cento.

Depois, o Vitória de Guimarães contratou o Norton de Matos e levou com ele o Hélder, que era um preparado físico natural de Paços de Brandão. Ele gostava de acompanhar os clubes perto da sua terra e acompanhou o Lourosa. Foi através dele que fui para o Vitória de Guimarães.

Saltei da terceira divisão praticamente para a primeira. Apesar de ter descido, toda a gente sabia que o Vitória ia voltar à Liga no máximo em dois anos. Foi um passo gigante na minha carreira. Encontrei uma estrutura muito diferente desde condições de trabalho a treinadores. A diferença foi muito grande, embora no Lourosa e no União de Lamas nunca me tenha faltado nada.

Quando se chega de baixo lá cima, conseguimos ver realmente as diferenças que existem. Comecei num clube da distrital, que jogava num campo de pó de terra, e chegar de um pó de terra a um clube como o Vitória é uma sensação incrível. É preciso sorte para lá chegar, mas também muito trabalho.

Subimos com o Vitória e com o Manuel Cajuda mantivemos grande parte dos jogadores. Sabíamos da qualidade dos jogadores e do compromisso que tinham para com o clube. Lutámos para chegar à Liga dos Campeões, mas conseguimos só o apuramento para o acesso à prova. Acabámos por perder com o Basileia e no jogo lá tiraram-nos um golo que daria a passagem à fase de grupos da Liga dos Campeões.

Fomos para a Taça UEFA e defrontámos o Portsmouth que era muito forte e fomos eliminados em casa. Não tínhamos vedetas, mas tínhamos um coletivo forte que vinha da II Liga. Eram jogadores que vinham de baixo, que sabiam as dificuldades que se atravessa nessas divisões. Agarrarámos a oportunidade e com trabalho e dedicação, conseguimos alcançar a melhor classificação da história do Vitória na Liga.

Estive seis anos ligado ao Vitória com dois empréstimos de seis meses. Senti que precisava de jogar e não fiquei acomodado. O Vitória quis sempre renovar-me o contrato, mas já na altura era muito ambicioso. Eles diziam que iam apostar e mim, mas nunca aconteceu. Queria passar a minha carreira a jogar e não estar no banco, apesar de estar num dos grandes clubes de Portugal.

Acabei por ir para o Arouca. Felizmente, sempre tive o privilégio de escolher alguns clubes e graças a Deus escolhi bem. Conseguimos subir um clube que veio dos distritais. O Arouca não tem assim muitos adeptos, mas os que têm gostam muito do clube.

Não é por ter falecido, já o dizia antes. O Vítor Oliveira era uma pessoa muito simples com uma visão do futebol muito acima da média. Ele conseguiu 11 subidas, não é para qualquer um. Duvido que tenhamos um treinador nos próximos 30 ou 40 anos capaz de subir de divisão tantas vezes como ele. Ele marcou o futebol português e todos os jogadores que trabalharam com ele.

Depois não segui com o Arouca para a Liga. Fui para o Santa Clara, um clube que está numa ilha. Não foi fácil alcançar a manutenção. Encontrei pessoas muito sérias, simples e humildes e vivi a transição de presidentes do Mário Batista para o Rui Cordeiro. As coisas mudaram drasticamente. O Rui Cordeiro teve uma visão muito à frente e muito ambiciosa, e manteve sempre uma relação simples e direta com os jogadores. Ele alcançou uma coisa inédita: tornou o Santa Clara um clube de primeira Liga.  


 

Aos 38 anos, Serginho procura a quinta subida da carreira ao serviço do Trofense


Prosseguiu a carreira no Gil Vicente e considero que fizemos uma boa campanha tanto na Taça como no campeonato. O Gil Vicente promoveu o Naninho dos juniores aos seniores e ele trouxe antigos juniores para o clube e colocou-os a jogar. Tínhamos o Cadú, o Vítor Gonçalves, o Simy e o Paulinho que hoje é jogador do Sporting.

Antes de chegar ao Gil, não conhecia o Paulinho. Inicialmente, ele jogava mais na ala e não a ponta de lança no entanto, como aparecia bem em zonas de finalização e finalizava bem, o Nandinho colocou-o a jogar com o Simy na frente. A partir daí, ele começou a fazer muitos golos.

Lembro-me que uma vez fomos ver Portugal a Braga e disse-lhe: ‘Se continuares assim, mais cedo ou mais tarde, estás a jogar aqui’. Dá-me orgulho e felicidade ver colegas com quem joguei em patamares superiores.

Era um grupo de jogadores pouco conhecidos, mas que jogava bom futebol. Sinto que na fase final dessa época, faltou-nos um pouco de experiência para ganhar e continuar na luta pela subida. Fizemos uma grande época e na Taça fomos até às meias-finais e perdemos contra o FC Porto. O clube não estava numa fase muito boa depois da descida e demorou a erguer-se. Mesmo assim, o Gil já era muito organizado, tinha excelentes condições e nunca nos faltou com nada.

Acabei por voltar aos Açores. Foi um clube que me marcou muito pela positiva e onde fui muito bem tratado. Com a entrada do Rui Cordeiro, o clube passou de lutar para não descer para subir de divisão. No primeiro ficámos perto, mas perdemos o treinador para o Marítimo (Daniel Ramos). A partir daí, caímos em termos anímicos. O clube ainda contratou o Quim Machado, que acabou por sair para o Belenenses e entrou o Rui Amorim. Fruto dos maus resultados, acabámos com o Carlos Pinto.

Na segunda época começámos de início com Carlos Pinto e correu bem, Tínhamos um plantel humilde, com bom espírito de grupo e respeitador das escolhas do treinador. Muitas vezes há atrasos nos voos, o que causa uma fadiga muito grande. Mas correu bem, tínhamos plantel muito humilde e que aceitava bem as decisões do treinador. Tínhamos bom espírito de grupo e subimos à Liga,

Apanhei alguns sustos desde turbulência à própria aterragem ou descolagem. Há colegas que têm medo, isso acaba por tornar tudo muito enervante e causa desgaste extra psicologicamente. Ainda consegui fazer sete jogos, mas no final eu e o clube analisámos e decidimos que o melhor era seguir para o Varzim. O clube preferiu apostar num guarda-redes mais jovem para o futuro. Sei que fiquei com as portas do clube abertas.

No ano passado estive no Varzim. A época acabou em março devido à pandemia, mas o trajeto estava a ser fantástico. Tínhamos um ponto à sexta jornada. A equipa era muito jovem, com muitos jogadores do Campeonato de Portugal que precisaram de tempo para se adaptarem. A partir da sexta jornada, fomos por ali fora e tivemos 11 jogos sem perder. Lutámos por algo mais, mas depois de perder com o Farense ficámos distanciados dos lugares cimeiros.

Não me sinto velho, muito pelo contrário. No entanto, tenho dois filhos. A minha esposa é açoriana e andámos sempre lá e cá. Tive algumas propostas da II Liga, mas longe de casa e dos meus filhos. Depois de analisar um pouco, optei por ir para o Trofense do Campeonato de Portugal.

A escolha foi acertada. O plano principal do Trofense era atingir a 3.ª Liga e já conseguimos. Estamos a disputar a subida à II Liga e qualquer das equipas pode subir porque têm muita qualidade. Todos os jogos são difíceis. Só sobe uma equipa, se subissem duas diria que estávamos bem encaminhados. Ainda faltam quatro jogos, mas há muitos pontos em disputa e tudo pode mudar. Já fizemos o bolo, agora queremos colocar a cereja no topo.

O meu quotidiano é normal. Tenho de estar às 9h30 no estádio do Trofense, eu tento chegar sempre às 9h para fazer algum trabalho-extra, equipar-me com calma e conviver com os meus amigos de clube. Um bom grupo ajuda e muito.

A viagem é o único entrave: tenho de passar na ponte do Freixo e costumo apanhar algum trânsito. São 70 quilómetros para cada lado, mas quem corre por gosto, não cansa. O que temos conseguido até hoje, ajuda a esquecer o trajeto cansativo. O Mika faz parte do meu barco e vamos a conversar e o tempo acaba por passar. Depois do treino volto para casa e estou com os meus filhotes. O mais pequeno às vezes está nos Açores com a minha esposa, às vezes ela vem cá.

Custa-me estar longe da minha esposa e do meu filho. Nunca joguei no Real Madrid ou no Barcelona para poder estar sentado numa cadeira e sossegado. Como nunca joguei, tenho de dar ao chinelo.»