O aparecimento de um coronavírus novo na origem de infeções respiratórias deixou o mundo em alerta. É uma emergência de saúde pública global de risco muito elevado, assim classificada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que levou a medidas excecionais por todo o mundo e também já está a afetar de forma significativa o desporto, com eventos cancelados ou adiados para tentar limitar o risco de contágio, e a lançar dúvidas sobre o que acontecerá aos grandes eventos do ano, com o Euro 2020 e o os Jogos Olímpicos de Tóquio à cabeça. O Maisfutebol faz um ponto da situação do impacto do Covid-19 por esta altura, e foi ver como se está a lidar com a questão no terreno, num clube da Liga.

Luís Miguel Silva é o responsável clínico de Gil Vicente e foca os cuidados de base no controlo diário dos atletas, algo que já é feito no dia a dia nos clubes. «As medidas que implementámos têm a ver com os cuidados do controlo de sintomas gripais, vigiar diariamente sinais de manifestação de síndrome gripal. Isso já fazemos regularmente, bem como o isolamento de qualquer atleta com sintomas de infeção, por causa do possível contágio», diz o médico ao Maisfutebol.

Depois há o foco nos cuidados individuais de higiene, de acordo também com as orientações da Direção Geral de Saúde (DGS) para a população. «Passamos a informação sobre a forma como o vírus se transmite, por gotículas, aerossóis ou contacto direto, e os cuidados a ter com os espirros, a proteção quando se tosse, lavar as mãos com maior frequência com desinfetante que temos nas instalações. Passa por uma prevenção individual e de grupo», continua, reforçando a ideia de que a limitação dos riscos depende antes de mais do cuidado de cada um, o que vale para atletas mas não só: «O mais importante é o cuidado individual e cada um fazer o que está ao seu alcance para se colocar a si próprio em segurança. Se temos disponível uma solução alcoólica, se todos o fizerem, se cada pessoa estiver atenta aos sinais, estamos todos dentro do mesmo padrão de segurança.» Isso não inclui o recurso a máscaras. Como refere Luís Miguel Silva, «o uso de máscara para toda a gente não é o que está recomendado».

Do protocolo nos clubes ao impacto de eventuais adiamentos

O procedimento em relação a algum atleta que revele uma infeção também está protocolado. «É visto e normalmente não vai estar em contacto com mais nenhum atleta. Se precisar de ser examinado vai ao hospital de referência acompanhado por um elemento da equipa médica, e vai para casa. Se precisar de ir ao clube vai a horas em que não haja treino», diz o responsável clínico do clube de Barcelos.

A Federação Portuguesa de Futebol promoveu nesta quinta-feira junto dos clubes uma ação de formação, em vídeoconferência, sobre o surto do coronavírus e os cuidados a ter, enquanto a Liga de clubes se reuniu com a DGS e anunciou também que irá acatar uma eventual recomendação das autoridades para que os jogos se realizem à porta fechada ou sejam adiados em caso de agravamento da situação, numa altura em que há em Portugal nove casos positivos de coronavírus confirmados.

Como médico, Luís Miguel Silva evita uma abordagem alarmista ao problema do Covid-19. «Em relação à situação em si, em função do contágio e número de infetados, não estou particularmente preocupado», observa: «Mas claro que estou preocupado genericamente, porque é algo com uma dimensão global e que interfere com a vida de toda a gente no dia a dia. Sabemos que vai haver mais casos, até uma altura em que, como vimos com todos os outros vírus que se manifestam de novo, vai-se atingir um ponto de equilíbrio.»

No plano desportivo há outras eventuais implicações com consequências que serão complicadas de gerir do ponto de vista do trabalho clínico nos clubes, acrescenta. Nomeadamente o eventual adiamento de jogos: «Se acontecer vai interferir com os ciclos de treino, que serão alterados. Se tivermos determinados planos de cargas nos jogadores, se alterarem as datas dos jogos, alteram as cargas. É muito diferente jogar de seis em seis ou de três em três dias.»

Itália no epicentro desportivo

E com isso virá o risco de congestionamento de calendário. Se em Portugal a questão não será dramática, «facilitada» pelo descalabro europeu das equipas portuguesas que deixou vagas as datas europeias, há outros casos em que poderá vir a ser mesmo muito difícil de gerir.  A dimensão do problema dependerá da evolução da evolução do surto e das recomendações das autoridades, mas em Itália ele já é real.

Itália é o país europeu com mais casos conhecidos de infeções pelo pelo vírus, o terceiro do mundo a seguir à China e à Coreia do Sul, com 3858 casos, 414 dos quais já curados, e 148 mortes, de acordo com os dados desta quinta-feira. E também aquele que viu o panorama desportivo mais condicionado. A Serie A teve no fim de semana passado seis jogos da 26ª jornada adiados, por condicionantes geográficas – o norte de Itália é a região mais afetada - inicialmente para maio, mas por agora reagendados para o fim de semana que aí vem. A meio da semana, também o Juventus-Milan e o Nápoles-Inter das meias-finais da Taça foram adiados.

Por decisão do Governo italiano, todos os jogos terão de decorrer à porta fechada até 3 de abril. E, de acordo com as indicações das autoridades sanitárias mundiais de contenção e vigilância concentrada nas pessoas associadas às regiões onde o vírus está mais ativo, várias outras partidas internacionais foram igualmente adiadas, como os jogos Juventus-Real Madrid, Atalanta-Lyon e Inter-Rennes da Youth League. Estão para já reagendados para a próxima semana. Também o Valência-Atalanta da Liga dos Campeões e o Getafe-Inter da Liga Europa se jogarão à porta fechada. A ligação italiana teve implicações por cá também na Algarve Cup, competição de futebol feminino que decorre nesta altura, sem jogadoras do Milan.

O primeiro caso conhecido de um futebolista infetado aconteceu em Itália, com o nigeriano King Udoh, do Pionese, o que levou a que fosse colocada em quarentena, além da sua equipa, também a formação sub-23 da Juventus, que esta defrontou.

Ainda na Europa, a Suíça adiantou-se e suspendeu os campeonatos da primeira e segunda divisões, para já até meados de março. Na Alemanha, o Borussia Dortmund suspendeu a digressão à Ásia prevista para o verão. Um pouco por toda a Europa organizações e clubes vão procurando lidar com o surto com recomendações aos atletas – a Premier League inglesa baniu o tradicional aperto de mão antes dos jogos e em várias partidas nos últimos dias foi possível ver os jogadores a fazerem um cumprimento com o cotovelo, no basquetebol a NBA recomendou aos jogadores que evitassem o «high five» como cumprimento, vários clubes, entre os quais o Bayern Munique, desaconselharam autógrafos e selfies. Recomendações também para os adeptos: o Gladbach, que defronta o Dortmund no fim de semana, pediu às pessoas da região de Heinsberg, particularmente afetada na Alemanha, para não irem ao jogo.

Na Ásia foram adiados vários jogos da Liga dos Campeões, bem como o campeonato coreano. Na China, onde o vírus foi pela primeira vez identificado em dezembro e o país onde aconteceram até agora 3000 das 3346 registadas pela OMS associadas ao Covid-19, o arranque do campeonato, previsto para meados de fevereiro, foi suspenso. O português Daniel Carriço assinou por sinal por estes dias com o Wuhan, o clube da região chinesa mais afetada, que está a estagiar em Espanha por estes dias.

Do Euro 2020 aos Jogos de Tóquio, na expectativa

Quanto às competições internacionais, a UEFA evitou até agora especular em relação ao Euro 2020, que tem início marcado para 12 de junho, espalhado por doze países diferentes. O presidente do organismo limitou-se a dizer que está «confiante» na capacidade de lidar com o problema. A UEFA colocou de resto qualquer decisão de adiamento ou cancelamento de jogos, incluindo os play-off para o Europeu, nas mãos das autoridades. E anunciou esta semana que criou um grupo de trabalho com a associação de Ligas Europeias para gerir a congestão do calendário causada pelos vários adiamentos.

Não é só no futebol, o combate ao surto está a ter implicações em todos os desportos e, em ano olímpico, também na preparação dos atletas. No início da semana o presidente do Comité Olímpico de Portugal, José Manuel Constantino, manifestou aliás preocupação em relação precisamente à abordagem a essa preparação, incluindo viagens e cuidados a ter, queixando-se também de falta de informação da DGS.

Quanto aos Jogos Olímpicos de Tóquio, com arranque previsto para 24 de julho, o Comité Olímpico Internacional também afastou para já a discussão de um cenário de cancelamento ou adiamento e criou uma comissão conjunta com a organização japonesa e a OMS para acompanhar a evolução da situação. A estimativa é que o final de maio, início de junho seja o prazo limite para decidir alguma alteração, mas as limitações causadas pelo coronavírus já se sentem, com alguns eventos teste adiados ou cancelados, enquanto o tradicional evento da passagem da tocha olímpica pelo país, onde deve chegar a 20 de março, sofrerá ajustes para evitar manifestações públicas.

Cancelamentos, adiamentos e quarentenas

Já foram suspensas ou canceladas, por indicação das autoridades, várias competições internacionais que estavam previstas para Portugal, como o Europeu de Masters de Atletismo em Braga, os Internacionais de Badminton nas Caldas da Rainha ou a Taça da Europa de juniores de judo, em Coimbra. Outras, como a Meia Maratona de Lisboa, marcada para 22 de março, anunciaram para já medidas para tentar diminuir riscos de contágio, que vão da medição da temperatura a todos os concorrentes à criação de uma zona de isolamento. 

Entre os atletas portugueses já afetados diretamente estão os três hoquistas do clube italiano Trissino. Entre eles Reinaldo Ventura, que já descreveu como se vivem os dias de quarentena.

As competições europeias de hóquei em patins foram suspensas, seguindo o exemplo de várias outras modalidades. Os Mundiais de pista coberta de atletismo, que deviam realizar-se na China, foram já adiados para o próximo ano, tal como a Maratona de Paris, remetida para outubro. No motociclismo, o arranque do Mundial de MotoGP foi adiado, com o cancelamento do GP do Qatar e também o adiamento do GP da Tailândia. Na Fórmula 1 foi adiado o Grande Prémio da China. No râguebi, foram igualmente adiados dois jogos do Torneio das Seis Nações, o Itália-Inglaterra e o Irlanda-Itália.

No ciclismo já foram anuladas várias provas, depois do que aconteceu na Volta aos Emirados Árabes Unidos, cancelada na sequência de dois casos positivos. Surgiram entretanto mais seis, de elementos associados ao pelotão, e equipas como a Cofidis, a Groupama ou a Gazprom continuam confinadas a um hotel de Abu Dhabi, em quarentena.

Esta é uma situação em evolução e o impacto dependerá do maior ou menos sucesso das medidas de contenção do contágio. Do desporto à vida quotidiana, medidas que começam em cada um e partem de uma abordagem informada. Por aqui é possível aceder à informação disponibilizada pela Direção-Geral de Saúde ou pelo SNS24, por aqui às indicações e dados da OMS.